Sobre o litígio aberto pela Monsanto contra o Estado argentino e empresas exportadoras de farelo de soja.

“(…) Directiva impede que uma legislação nacional conceda uma protecção absoluta do produto patenteado enquanto tal, independentemente de exercer ou não a sua função na matéria que o contém”.

Confira abaixo a íntegra do acórdão.

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção)

6 de Julho de 2010 (*)

«Propriedade industrial e comercial – Protecção jurídica das invenções biotecnológicas – Directiva 98/44/CE – Artigo 9.° – Patente que protege um produto que contém uma informação genética ou que consiste numa informação genética – Matéria que incorpora o produto – Protecção – Requisitos»

No processo C‑428/08,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Rechtbank ’s‑Gravenhage (Países Baixos), por decisão de 24 de Setembro de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 29 de Setembro de 2008, no processo

Monsanto Technology LLC

contra

Cefetra BV,

Cefetra Feed Service BV,

Cefetra Futures BV,

Alfred C. Toepfer International GmbH,

sendo interveniente:

Estado argentino,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção),

composto por: V. Skouris, presidente, A. Tizzano, K. Lenaerts, J.‑C. Bonichot, E. Levits, presidentes de secção, A. Borg Barthet, J. Malenovský, U. Lõhmus e L. Bay Larsen (relator), juízes,

advogado‑geral: P. Mengozzi,

secretário: M. Ferreira, administradora principal,

vistos os autos e após a audiência de 15 de Dezembro de 2009,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Monsanto Technology LLC, por W. A. Hoyng e F. W. E. Eijsvogels, advocaten,

–        em representação da Cefetra BV, da Cefetra Feed Service BV, da Cefetra Futures BV e da Alfred C. Toepfer International GmbH, por J. J. Allen e H. M. H. Speyart van Woerden, advocaten,

–        em representação do Estado argentino, por B. Remiche, avocat, M. Roosen e V. Cassiers, advocaten,

–        em representação do Governo italiano, por I. Bruni, na qualidade de agente, assistida por D. Del Gaizo, avvocato dello Stato,

–        em representação do Governo neerlandês, por C. Wissels e M. de Grave, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo português, por L. Inez Fernandes, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo do Reino Unido, por S. Ossowski, na qualidade de agente,

–        em representação da Comissão Europeia, por H. Krämer e W. Wils, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado‑geral na audiência de 9 de Março de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação do artigo 9.° da Directiva 98/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Julho de 1998, relativa à protecção jurídica das invenções biotecnológicas (JO L 213, p. 13, a seguir «directiva»).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de dois litígios que opõem a Monsanto Technology LLC (a seguir «Monsanto»), por um lado, à Cefetra BV, à Cefetra Feed Service BV, à Cefetra Futures BV (a seguir, conjuntamente, «Cefetra»), apoiadas pelo Estado argentino, interveniente, e, por outro, à Vopak Agencies Rotterdam BV (a seguir «Vopak») e à Alfred C. Toepfer International GmbH (a seguir «Toepfer»), a respeito de importações na Comunidade Europeia, durante os anos de 2005 e 2006, de farinha de soja proveniente da Argentina.

Quadro jurídico

Direito internacional

3        O artigo 27.° do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio, que constitui o anexo 1 C do Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC), assinado em Marraquexe, em 15 de Abril de 1994, e aprovado pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986/1994) (JO L 336, p. 1, a seguir «acordo ADPIC»), dispõe no essencial, sob a epígrafe «Objecto patenteável», no n.° 1, que:

–        podem ser obtidas patentes para quaisquer invenções, quer se trate de produtos ou processos, em todos os domínios da tecnologia, desde que essas invenções sejam novas, envolvam uma actividade inventiva e sejam susceptíveis de aplicação industrial;

–        será possível gozar de direitos de patente sem discriminação quanto ao local de invenção, ao domínio tecnológico e ao facto de os produtos serem importados ou produzidos localmente.

4        O artigo 30.° do mesmo acordo, sob a epígrafe «Excepções aos direitos conferidos», precisa que os membros podem prever excepções limitadas aos direitos exclusivos conferidos por uma patente, desde que essas excepções não colidam de modo injustificável com a exploração normal da patente e não prejudiquem de forma injustificável os legítimos interesses do titular da patente, tendo em conta os legítimos interesses de terceiros.

Direito da União

5        O artigo 1.° da directiva estabelece que os Estados‑Membros devem proteger as invenções biotecnológicas através do direito nacional de patentes e que, se necessário, o adaptarão de modo a ter em conta o disposto na referida directiva. Acrescenta que a directiva não prejudica as obrigações que decorrem para os Estados‑Membros, nomeadamente, do acordo ADPIC.

6        O artigo 2.° da directiva define «matéria biológica» como qualquer matéria que contenha informações genéticas e seja auto‑replicável ou replicável num sistema biológico.

7        O artigo 3.° prevê que são patenteáveis as invenções novas que impliquem uma actividade inventiva e sejam susceptíveis de aplicação industrial, mesmo quando incidam, em particular, sobre um produto composto de matéria biológica ou que contenha matéria biológica. O artigo especifica que uma matéria biológica isolada do seu ambiente natural ou produzida com base num processo técnico pode ser objecto de uma invenção, mesmo que preexista no estado natural.

8        O vigésimo segundo considerando da directiva sublinha que o debate sobre a patenteabilidade de sequências ou sequências parciais de genes é fonte de controvérsia. Enuncia que a concessão de uma patente a invenções que se relacionem com essas sequências ou sequências parciais deve obedecer aos mesmos critérios de patenteabilidade aplicados a todos os outros domínios tecnológicos, isto é, novidade, actividade inventiva e aplicação industrial. Acrescenta que a aplicação industrial de uma sequência ou de uma sequência parcial deve ser exposta de forma concreta no pedido da patente.

9        Nos termos do vigésimo terceiro considerando da directiva, uma mera sequência de ADN sem indicação de uma função biológica não contém quaisquer ensinamentos de natureza técnica, pelo que não poderá constituir uma invenção patenteável.

10      O vigésimo quarto considerando indica que, para que o critério da aplicação industrial seja respeitado no caso de uma sequência [ou de uma sequência] parcial de um gene ser utilizada para a produção de uma proteína ou proteína parcial, é necessária a especificação da proteína parcial produzida ou da função assegurada.

11      O artigo 5.°, n.° 3, da directiva, que consta do capítulo I sob a epígrafe «Patenteabilidade», exige que a aplicação industrial de uma sequência ou de uma sequência parcial de um gene seja concretamente exposta no pedido de patente.

12      O artigo 9.°, que consta do capítulo II sob a epígrafe «Âmbito da protecção», dispõe:

«A protecção conferida por uma patente a um produto que contenha uma informação genética ou que consista numa informação genética abrange qualquer matéria […] em que o produto esteja incorporado e na qual esteja contida e exerça a sua função.»

Direito nacional

13      O artigo 53.° da Lei relativa às patentes de 1995 (Rijksoctrooiwet 1995, a seguir «Lei de 1995») prevê:

«[…] a patente confere ao titular […] o direito exclusivo:

a)      na sua empresa ou para a sua empresa, de fabrico, utilização, introdução no mercado ou revenda, locação, entrega ou comercialização, sob outra forma, do produto patenteado ou da sua oferta, importação ou armazenamento para um destes fins;

b)      na sua empresa ou para a sua empresa, de aplicação do processo patenteado, ou de utilização, introdução no mercado ou revenda, locação, entrega do produto obtido directamente pela aplicação desse processo, ou comercialização, sob outra forma, do produto ou da sua oferta, importação ou armazenamento para um destes fins».

14      O artigo 53.°‑A desta lei tem a seguinte redacção:

«1.      No que diz respeito a uma patente relativa a uma matéria biológica dotada, em virtude da invenção, de determinadas propriedades, o direito exclusivo abrange qualquer matéria biológica obtida a partir da referida matéria biológica por reprodução ou multiplicação, sob forma idêntica ou diferenciada, e dotada dessas mesmas propriedades.

2.      No que diz respeito a uma patente relativa a um processo que permita produzir uma matéria biológica dotada, em virtude da invenção, de determinadas propriedades, o direito exclusivo abrange a matéria biológica directamente obtida por esse processo e qualquer outra matéria biológica obtida a partir da matéria biológica directamente obtida, por reprodução ou multiplicação, sob forma idêntica ou diferenciada, e dotada dessas mesmas propriedades.

3.       No que diz respeito a uma patente de um produto que contenha uma informação genética ou que consista numa informação genética, o direito exclusivo abrange qualquer matéria em que o produto esteja incorporado e na qual a informação genética esteja contida e exerça a sua função […].»

Litígio no processo principal e questões prejudiciais

15      A Monsanto é titular da patente europeia EP 0 546 090, concedida em 19 de Junho de 1996, relativa à 5‑enolpiruvil‑siquimato‑3‑fosfato sintase tolerante ao glifosato (a seguir «patente europeia»). Esta patente europeia é válida, nomeadamente, nos Países Baixos.

16      O glifosato é um herbicida não selectivo. Numa planta, bloqueia o centro activo da enzima 5‑enolpiruvil‑siquimato‑3‑fosfato sintase (a seguir «EPSPS») da classe I, que desempenha um papel importante no crescimento da planta. Esta acção do glifosato provoca a morte da planta.

17      A patente europeia descreve uma classe de enzimas EPSPS da classe II que não são sensíveis ao glifosato. As plantas que contêm essas enzimas sobrevivem à utilização do glifosato, ao passo que as ervas daninhas são destruídas. Os genes codificadores das enzimas da classe II foram isolados a partir de três bactérias. A Monsanto introduziu estes genes no ADN de uma planta de soja que denominou soja RR («Roundup Ready»). Na sequência desta introdução, a planta de soja RR sintetiza uma enzima EPSPS da classe II denominada CP4‑EPSPS, que resiste ao glifosato, tornando‑se assim resistente ao herbicida «Roundup».

18      A soja RR é cultivada em grande escala na Argentina, onde a invenção da Monsanto não é protegida por patente.

19      A Cefetra e a Toepfer comercializam farinha de soja. Três carregamentos de farinha de soja chegaram ao porto de Amesterdão, respectivamente, em 16 de Junho de 2005, 21 de Março e 11 de Maio de 2006, provenientes da Argentina. A Vopak efectuou a declaração aduaneira de um dos carregamentos.

20      Os três carregamentos foram retidos pelas autoridades aduaneiras com base no Regulamento (CE) n.° 1383/2003 do Conselho, de 22 de Julho de 2003, relativo à intervenção das autoridades aduaneiras em relação às mercadorias suspeitas de violarem certos direitos de propriedade intelectual e a medidas contra mercadorias que violem esses direitos (JO L 196, p. 7). Foi autorizada a saída dos carregamentos após a entrega de amostras à Monsanto. Esta mandou analisar a mercadoria para determinar se provinha da soja RR.

21      No seguimento das análises, que revelavam a presença, na farinha, da enzima CP4‑EPSPS e da sequência de ADN que a codifica, a Monsanto intentou contra a Cefetra, a Vopak e a Toepfler, no Rechtbank ’s‑Gravenhage, acções de condenação em proibições baseadas no artigo 16.° do Regulamento n.° 1383/2003 e em proibições de violações à sua patente europeia relativamente a todos os países onde esta vigora. O Estado argentino interveio em apoio dos pedidos da Cefetra.

22      O Rechtbank ’s‑Gravenhage considera que a Monsanto demonstrou a presença, num dos carregamentos em causa, da sequência de ADN protegida pela sua patente europeia. Interroga‑se, porém, sobre se essa única presença é suficiente para declarar uma violação da patente europeia da Monsanto no momento da comercialização da farinha na Comunidade.

23      A Cefetra, apoiada pelo Estado argentino, e a Toepfer sustentam que o artigo 53.°a da Lei de 1995 tem carácter taxativo. Deveria ser considerado lex specialis derrogatória do regime geral de protecção que o artigo 53.° da mesma lei oferece a um produto patenteado. Na medida em que o ADN presente na farinha de soja já não poderia aí exercer a sua função, a Monsanto não se poderia opor à comercialização dessa farinha exclusivamente com o fundamento da presença nela do ADN. Existe uma relação entre a patenteabilidade reduzida, que é sublinhada no vigésimo terceiro e vigésimo quarto considerandos da directiva, e o âmbito da protecção conferida por uma patente.

24      Segundo a Monsanto, o objectivo da directiva não é restringir a protecção jurídica das invenções biotecnológicas existente nos Estados‑Membros. A directiva não afecta a protecção reconhecida pelo artigo 53.° da Lei de 1995, protecção essa que é absoluta. Uma restrição da protecção seria incompatível com o artigo 27.° do acordo ADPIC.

25      O Rechtbank ’s‑Gravenhage observa que o artigo 53.°a, n.° 3, da Lei de 1995, tal como o artigo 9.° da directiva, inclui no âmbito do direito exclusivo do titular da patente toda a matéria em que o ADN esteja incorporado se a informação genética tiver sido incluída nessa matéria e exercer aí a respectiva função.

26      Esse órgão jurisdicional constata que o ADN não pode exercer a sua função na farinha de soja, que é uma matéria morta.

27      Considera que a redacção dos artigos 53.°a, n.° 3, da Lei de 1995 e 9.° da directiva é incompatível com a tese sustentada perante si pela Monsanto, segundo a qual é suficiente que o ADN tenha exercido, num dado momento, a sua função na planta ou possa exercer novamente a sua função, depois de ter sido isolado na farinha de soja e introduzido na matéria viva.

28      No entanto, segundo o Rechtbank ’s‑Gravenhage, um gene, mesmo que faça parte de um organismo, não tem, de forma alguma, de exercer sempre a sua função. Com efeito, existem genes que só são activados em determinadas situações, como o calor, a seca ou uma doença.

29      Por último, não é desprovido de interesse o facto de, na cultura da soja, de que é feita a farinha, ter sido obtido lucro com a invenção, sem ter existido uma contrapartida.

30      No caso de não ser possível contrariar a comercialização da farinha de soja com base no artigo 53.°a da Lei de 1995, que transpõe o artigo 9.° da directiva para o direito interno, coloca‑se a questão de saber se poderá ser invocada uma protecção absoluta clássica como a prevista no artigo 53.° da Lei de 1995.

31      A este respeito, a directiva não parece impedir a protecção absoluta de produtos prevista numa disposição como o artigo 53.° da Lei de 1995, antes procurando garantir uma protecção mínima. Contudo, os indícios a favor desta interpretação não são suficientemente claros.

32      Neste contexto, o Rechtbank ’s‑Gravenhage decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O artigo 9.° da [directiva] deve ser interpretado no sentido de que a protecção conferida nesse artigo também pode ser invocada numa situação, como a do presente processo, em que o produto (a sequência de ADN) faz parte de uma matéria importada para a União Europeia (farinha de soja), não exercendo a sua função no momento da alegada infracção, mas [tendo‑a] efectivamente exercido (na planta da soja) ou [podendo] eventualmente [vir] a exercê‑la novamente, depois de isolado daquela matéria e introduzido na célula de um organismo?

2)      Partindo do pressuposto da presença da sequência de ADN com o número EP 0 546 090 descrita na [reivindicação] 6 da patente na farinha de soja importada para a Comunidade pela Cefetra e pela [Toepfer] e de que o ADN foi incorporado na farinha de soja, no sentido do artigo 9.° da [directiva], e não exerce aí a sua função, a protecção conferida pela directiva, em especial pelo seu artigo 9.°, a uma patente relativa a uma matéria biológica impede que a legislação nacional em matéria de patentes atribua (adicionalmente) uma protecção absoluta ao produto (ADN) enquanto tal, independentemente de o ADN exercer a sua função, devendo portanto a protecção do artigo 9.° ser considerada exclusiva na situação referida nesse artigo, de o produto ser constituído por informação genética ou conter tal informação, estando o produto incorporado na matéria [que contém] a informação genética?

3)      Para a resposta à questão anterior, é relevante o facto de a patente com o número EP 0 546 090 ter sido solicitada e concedida em 19 de Junho de 1996, ou seja, antes da aprovação da [directiva], e de tal protecção absoluta do produto segundo a legislação nacional em matéria de patentes ter sido conferida antes de ter sido aprovada esta directiva?

4)      Na resposta às questões precedentes, é possível ter em conta o [acordo ADPIC], em especial os seus artigos 27.° e 30.°?»

Quanto às questões prejudiciais

Quanto à primeira questão

33      Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 9.° da directiva deve ser interpretado no sentido de que confere a protecção dos direitos de patente em circunstâncias como as do litígio no processo principal, em que o produto patenteado está contido na farinha de soja, na qual não exerce a função para a qual foi patenteado, mas tendo previamente exercido a função na planta de soja, da qual essa farinha é um produto derivado, ou em que poderia eventualmente vir a exercer novamente essa função, depois de ter sido extraído da farinha e introduzido numa célula de um organismo vivo.

34      A este respeito, importa observar que o artigo 9.° da directiva sujeita a protecção que prevê ao requisito de a informação genética contida no produto patenteado ou que constitua esse produto «exer[cer]» a sua função na «matéria […] em que» essa informação está contida.

35      O tempo presente utilizado pelo legislador comunitário e a expressão «matéria […] em que», na acepção comum, implicam que a função seja exercida actualmente e na própria matéria em que é incorporada a sequência de ADN que contém a informação genética.

36      No caso de uma informação genética como a que está em causa no processo principal, a função da invenção é exercida quando a informação genética protege a matéria biológica que a incorpora da acção efectiva ou da possibilidade previsível de uma acção de um produto que pode causar a morte dessa matéria.

37      Ora, a utilização de um herbicida na farinha de soja não é previsível nem mesmo normalmente concebível. Além disso, mesmo admitindo esta utilização, a função do produto patenteado, que visa proteger a vida de uma matéria biológica que o contém, não poderia ser exercida, uma vez que a informação genética já só se encontra em forma de resíduo na farinha de soja, que é uma matéria morta obtida depois de várias operações de tratamento da soja.

38      Resulta das considerações precedentes que a protecção prevista no artigo 9.° da directiva está excluída quando a informação genética tenha deixado de exercer a função que assegurava na matéria inicial da qual derivou a matéria controvertida.

39      Daí resulta também que essa protecção não pode ser invocada em relação à matéria controvertida com base unicamente no fundamento de que a sequência de ADN que contém a informação genética poderia ser extraída dessa matéria e cumprir a sua função numa célula de um organismo vivo, após ter sido aí introduzida. Com efeito, em tal hipótese, a função seria exercida numa matéria simultaneamente distinta e biológica. Por conseguinte, só poderia dar origem ao direito à protecção em relação a essa matéria.

40      Admitir uma protecção ao abrigo do artigo 9.° da directiva com base no fundamento de que a informação genética exerceu previamente a sua função na matéria que a contém ou que poderá eventualmente vir a exercer novamente essa função numa outra matéria equivaleria a privar de efeito útil a disposição interpretada, visto que, em princípio, uma ou outra situação poderia sempre ser invocada.

41      Todavia, a Monsanto alega que, a título principal, reivindica uma protecção da sua sequência de ADN patenteada enquanto tal. Explica que a sequência de ADN em causa no litígio no processo principal está protegida pelo direito nacional de patentes aplicável, em conformidade com o disposto no artigo 1.°, n.° 1, da directiva. O artigo 9.° da directiva refere‑se unicamente ao alargamento dessa protecção a outras matérias em que o produto patenteado esteja incorporado. No âmbito do litígio no processo principal, esta empresa não procura assim obter a protecção prevista no artigo 9.° da directiva para a farinha de soja que contém a sequência de ADN patenteada. O caso em apreço diz respeito à protecção da sequência de ADN enquanto tal, que não está ligada ao exercício de uma função específica. Esta protecção é, de facto, absoluta ao abrigo do direito nacional aplicável, para o qual remete o artigo 1.°, n.° 1, da directiva.

42      Uma análise como esta não pode ser acolhida.

43      A este respeito, deve salientar‑se que o vigésimo terceiro considerando da directiva enuncia que «uma mera sequência de ADN sem indicação de uma função biológica não contém quaisquer ensinamentos de natureza técnica, pelo que não poderá constituir uma invenção patenteável».

44      Por outro lado, o vigésimo segundo e vigésimo quarto considerandos, bem como o artigo 5.°, n.° 3, da directiva, implicam que uma sequência de ADN não beneficia de nenhuma protecção ao abrigo do direito de patentes quando a função exercida por essa sequência não for especificada.

45      Assim, uma vez que a directiva sujeita a patenteabilidade de uma sequência de ADN à indicação da função que assegura, deve considerar‑se que não atribui nenhuma protecção a uma sequência de ADN patenteada que não possa exercer a função específica para a qual tenha sido patenteada.

46      Esta interpretação é corroborada pela redacção do artigo 9.° da directiva que sujeita a protecção que prevê ao requisito de a sequência de ADN patenteada exercer a sua função na matéria em que está incorporada.

47      A interpretação segundo a qual, ao abrigo da directiva, uma sequência de ADN patenteada poderia beneficiar de uma protecção absoluta enquanto tal, independentemente da questão de saber se a sequência exerce ou não a sua função, privaria essa disposição do seu efeito útil. Com efeito, uma protecção atribuída formalmente à sequência de ADN enquanto tal abrangeria necessariamente a matéria com a qual forma um todo enquanto essa situação durar.

48      Como resulta do n.° 37 do presente acórdão, uma sequência de ADN como a que está em causa no litígio no processo principal não pode exercer a sua função quando esteja incorporada numa matéria morta como a farinha de soja.

49      Tal sequência não beneficia, portanto, da protecção dos direitos de patente, uma vez que nem o artigo 9.° da directiva nem nenhuma outra sua disposição atribui protecção a uma sequência de ADN patenteada que não pode exercer a sua função.

50      Consequentemente, importa responder à primeira questão que o artigo 9.° da directiva deve ser interpretado no sentido de que não confere a protecção dos direitos de patente em circunstâncias como as do litígio no processo principal, em que o produto patenteado está contido na farinha de soja, na qual não exerce a função para a qual foi patenteado, mas tendo previamente exercido a função na planta de soja, da qual essa farinha é um produto derivado, ou em que poderia eventualmente vir a exercer novamente essa função, depois de ter sido extraído da farinha e introduzido numa célula de um organismo vivo.

Quanto à segunda questão

51      Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 9.° da directiva procede a uma harmonização completa da protecção que confere, de modo que impede que uma legislação nacional conceda uma protecção absoluta do produto patenteado enquanto tal, independentemente de exercer ou não a sua função na matéria que o contém.

52      Esta questão parte do pressuposto, referido na decisão de reenvio, de que uma disposição nacional como o artigo 53.° da Lei de 1995 atribui efectivamente uma protecção absoluta ao produto patenteado.

53      A fim de responder à segunda questão, importa observar que, no terceiro e quinto a sétimo considerandos da directiva, o legislador comunitário constata que:

–        é essencial uma protecção eficaz e harmonizada no conjunto dos Estados‑Membros para preservar e incentivar os investimentos no domínio da biotecnologia;

–        existem divergências ao nível da protecção das invenções biotecnológicas entre as leis e práticas dos diferentes Estados‑Membros;

–        tais disparidades são susceptíveis de criar entraves ao comércio e obstar desse modo ao funcionamento do mercado interno;

–        tais divergências podem vir a acentuar‑se à medida que os Estados‑Membros forem adoptando novas leis e práticas administrativas diferentes ou que as interpretações jurisprudenciais nacionais se forem desenvolvendo de forma distinta;

–        a evolução heterogénea das legislações nacionais relativas à protecção jurídica das invenções biotecnológicas na Comunidade pode desencorajar ainda mais o comércio, em detrimento do desenvolvimento industrial das invenções e do bom funcionamento do mercado interno.

54      No oitavo e décimo terceiro considerandos dispõe ainda que:

–        a protecção jurídica das invenções biotecnológicas não exige a criação de um direito específico que substitua o direito nacional de patentes;

–        o direito nacional de patentes continua a ser a referência essencial no que respeita à protecção jurídica das invenções biotecnológicas, embora deva ser adaptado ou completado em certos pontos específicos para tomar em consideração de forma adequada a evolução da tecnologia que utiliza matéria biológica, mas que preenche todavia os requisitos de patenteabilidade;

–        o enquadramento jurídico comunitário relativo à protecção das invenções biotecnológicas pode limitar‑se à definição de certos princípios aplicáveis, nomeadamente, à patenteabilidade da matéria biológica enquanto tal e ao âmbito da protecção conferida por uma patente sobre uma invenção biotecnológica.

55      Resulta destas indicações que o legislador comunitário pretendeu proceder a uma harmonização limitada no seu âmbito material, mas apropriada para remediar as divergências existentes e prevenir divergências futuras entre os Estados‑Membros no domínio da protecção das invenções biotecnológicas.

56      A harmonização decidida visa assim evitar entraves ao comércio.

57      Além disso, enquadra‑se num compromisso entre os interesses dos titulares de patentes e as necessidades do bom funcionamento do mercado interno.

58      No que se refere, em particular, ao artigo 9.° da directiva, constante do capítulo II sob a epígrafe «Âmbito da protecção», a abordagem do legislador comunitário traduz a sua intenção de assegurar a mesma protecção das patentes em todos os Estados‑Membros.

59      Com efeito, uma protecção uniforme parece ser o melhor meio de suprimir ou de prevenir divergências entre os Estados‑Membros e de assegurar o equilíbrio desejado entre os interesses dos titulares de patentes e os de outros operadores, enquanto que, pelo contrário, uma abordagem de harmonização mínima adoptada em benefício dos titulares de patentes, por um lado, comprometeria o equilíbrio pretendido dos interesses em causa e, por outro, só poderia consolidar ou dar origem a divergências entre os Estados‑Membros e, por consequência, a entraves ao comércio.

60      Daqui resulta que a harmonização realizada pelo artigo 9.° da directiva deve ser considerada completa.

61      O artigo 1.°, n.° 1, primeiro período, da directiva não se opõe a esta conclusão, na medida em que remete para o direito nacional de patentes no que se refere à protecção das invenções biotecnológicas. Com efeito, o segundo período do mesmo número enuncia que, se necessário, os Estados‑Membros adaptarão o seu direito nacional de patentes de modo a ter em conta o disposto na presente directiva, ou seja, em particular, as disposições que realizam uma harmonização completa.

62      Por consequência, na medida em que a directiva não atribui protecção a uma sequência de ADN patenteada que não pode exercer a sua função, a disposição interpretada opõe‑se à concessão por um legislador nacional de uma protecção absoluta a uma sequência de ADN patenteada enquanto tal, independentemente de exercer ou não a sua função na matéria que a contém.

63      Por conseguinte, há que responder à segunda questão que o artigo 9.° da directiva procede a uma harmonização completa da protecção que confere, de modo que impede que uma legislação nacional conceda uma protecção absoluta do produto patenteado enquanto tal, independentemente de exercer ou não a sua função na matéria que o contém.

Quanto à terceira questão

64      Com a terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 9.° da directiva se opõe a que o titular de uma patente concedida antes da adopção desta directiva invoque a protecção absoluta do produto patenteado que lhe foi atribuída pela legislação nacional então aplicável.

65      Tal como a segunda questão, também esta parte do pressuposto de que, antes da entrada em vigor da directiva, uma disposição nacional como o artigo 53.° da Lei de 1995 atribuía efectivamente uma protecção absoluta ao produto patenteado no momento da concessão da patente.

66      Com vista a responder à dita questão, importa lembrar que, segundo jurisprudência assente, uma norma nova é, em princípio, imediatamente aplicável aos efeitos futuros de uma situação nascida na vigência da norma anterior (v., designadamente, acórdão de 11 de Dezembro de 2008, Comissão/Freistaat Sachsen, C‑334/07 P, Colect., p. I‑9465, n.° 43 e jurisprudência aí referida).

67      A directiva não prevê nenhuma derrogação a este princípio.

68      De resto, a não aplicação da directiva às patentes concedidas anteriormente criaria, entre os Estados‑Membros, diferenças de protecção que impediriam a harmonização pretendida.

69      Por conseguinte, importa responder à terceira questão que o artigo 9.° da directiva opõe‑se a que o titular de uma patente concedida antes da adopção desta directiva invoque a protecção absoluta do produto patenteado que lhe foi atribuída pela legislação nacional então aplicável.

Quanto à quarta questão

70      Com a quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se os artigos 27.° e 30.° do acordo ADPIC são relevantes para efeitos da interpretação dada ao artigo 9.° da directiva.

71      A este respeito, cabe recordar que as disposições do acordo ADPIC não são susceptíveis de criar, para os particulares, direitos que estes possam invocar directamente num tribunal por força do direito da União (acórdão de 14 de Dezembro de 2000, Dior e o., C‑300/98 e C‑392/98, Colect., p. I‑11307, n.° 44).

72      Se se concluir que, no domínio em questão, existe regulamentação da União, aplica‑se o direito da União, o que implica a obrigação de, na medida do possível, proceder a uma interpretação conforme ao acordo ADPIC, sem que, contudo, possa ser atribuído efeito directo à disposição em causa desse acordo (acórdão de 11 de Setembro de 2007, Merck Genéricos – Produtos Farmacêuticos, C‑431/05, Colect., p. I‑7001, n.° 35).

73      Uma vez que a directiva representa a regulamentação da União em matéria de patentes, deve assim ser, na medida do possível, objecto de uma interpretação conforme ao acordo ADPIC.

74      A este respeito, não se pode deixar de observar que a interpretação dada ao artigo 9.° da directiva no presente acórdão não contraria esta obrigação.

75      Com efeito, o artigo 9.° da directiva regula o âmbito da protecção conferida por uma patente ao seu titular, enquanto que os artigos 27.° e 30.° do acordo ADPIC dizem respeito, respectivamente, à patenteabilidade e às excepções aos direitos conferidos por uma patente.

76      Admitindo que se possa considerar que o conceito de «excepções aos direitos conferidos» engloba não só as exclusões de direitos mas também as limitações destes, há que concluir que a interpretação do artigo 9.° da directiva que limita a protecção conferida às situações em que o produto patenteado exerce a sua função não é susceptível de colidir de modo injustificável com a exploração normal da patente nem de «[prejudicar] de forma injustificável os legítimos interesses do titular da patente, tendo em conta os legítimos interesses de terceiros», na acepção do artigo 30.° do acordo ADPIC.

77      Por conseguinte, importa responder à quarta questão que os artigos 27.° e 30.° do acordo ADPIC não são relevantes para efeitos da interpretação dada ao artigo 9.° da directiva.

Quanto às despesas

78      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) declara:

1)      O artigo 9.° da Directiva 98/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Julho de 1998, relativa à protecção jurídica das invenções biotecnológicas, deve ser interpretado no sentido de que não confere a protecção dos direitos de patente em circunstâncias como as do litígio no processo principal, em que o produto patenteado está contido na farinha de soja, na qual não exerce a função para a qual foi patenteado, mas tendo previamente exercido a função na planta de soja, da qual essa farinha é um produto derivado, ou em que poderia eventualmente vir a exercer novamente essa função, depois de ter sido extraído da farinha e introduzido numa célula de um organismo vivo.

2)      O artigo 9.° da Directiva 98/44 procede a uma harmonização completa da protecção que confere, de modo que impede que uma legislação nacional conceda uma protecção absoluta do produto patenteado enquanto tal, independentemente de exercer ou não a sua função na matéria que o contém.

3)      O artigo 9.° da Directiva 98/44 opõe‑se a que o titular de uma patente concedida antes da adopção desta directiva invoque a protecção absoluta do produto patenteado que lhe foi atribuída pela legislação nacional então aplicável.

4)      Os artigos 27.° e 30.° do Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio, que constitui o anexo 1 C do Acordo que institui a Organização Mundial do Comércio (OMC), assinado em Marraquexe, em 15 de Abril de 1994, e aprovado pela Decisão 94/800/CE do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, relativa à celebração, em nome da Comunidade Europeia e em relação às matérias da sua competência, dos acordos resultantes das negociações multilaterais do Uruguay Round (1986/1994), não são relevantes para efeitos da interpretação dada ao artigo 9.° da Directiva 98/44.

Assinaturas


* Língua do processo: neerlandês.