Há grande diferença entre dizer que algo não ocorre e dizer que não há evidências suficientes para saber se ele ocorre ou não. Essa sutil distinção, porém de grandes consequências, está por trás do debate recém lançado em função da divulgação de um estudo da Agência inglesa de Padronização Alimentar (FSA) sobre os alimentos orgânicos. Manchetes como a da agência BBC estampam o seguinte: “Alimentos orgânicos não são mais nutritivos do que os convencionais”. Assim, no afirmativo, a questão parece dada como encerrada. É certeza absoluta.

Há, entretanto, certa diferença entre o que diz o estudo e o que foi publicado sobre ele na imprensa — inclusive através da assessoria de imprensa da própria FSA. E, curiosamente, há também algumas diferenças entre dados que o estudo revela e as conclusões dos autores.

A pesquisa foi feita em duas partes e analisou os estudos realizados nos últimos 50 anos sobre efeitos dos orgânicos à saúde e sua composição nutricional. Os critérios de filtragem foram definidos de acordo com os padrões estabelecidos pela equipe da London School of Hygiene and Tropical Medicine e, no primeiro caso, os pesquisadores consideraram aceitáveis apenas os estudos cujos resultados apresentaram relevância clara e direta para a saúde humana.

As análises compararam níveis de determinados “nutrientes e outras substâncias” em alimentos orgânicos e convencionais. Logo no sumário executivo do estudo pode-se ler que “foram encontradas diferenças significativas entre alimentos produzidos de forma orgânica ou convencional no conteúdo de alguns minerais (mais nitrogênio em produtos convencionais; mais magnésio e zinco em produtos orgânicos), fitonutrientes (mais compostos fenólicos e flavonoides em produtos orgânicos) e açúcares (mais em orgânicos).

Mesmo assim, os autores concluem que “não há atualmente declaração definitiva independente sobre a natureza e importância de diferenças de conteúdo de nutrientes e outras substâncias nutricionalmente relevantes (nutrientes e outras substâncias) entre alimentos produzidos de forma orgânica ou convencional.”

Porém, mais importante do que isso é destacar que o estudo desconsiderou em suas análises os componentes contaminantes (agrotóxicos), como resíduos de herbicidas, inseticidas e fungicidas e seus efeitos de longo prazo na saúde humana (além, é claro, de ter ignorado os impactos ambientais das práticas orgânicas e convencionais).

Desconsiderar o uso de venenos parece um critério no mínimo curioso para uma revisão tão pretensiosa, cujos autores chegam a declarar que “Este estudo não significa que as pessoas não devem comer alimentos orgânicos. O que ele mostra é que existe pouca, se é que alguma, diferença nutricional entre alimentos produzidos de forma orgânica e convencional e que não há evidência de benefícios adicionais à saúde ao se consumir alimentos orgânicos”.

Além disso, os autores ressaltam em diversos momentos a falta de dados disponíveis para a realização do estudo e, em muitos casos, a baixa qualidade das pesquisas.

Na palavra dos autores: “Concluindo, considerando a limitação dos dados disponíveis e o fato de eles serem altamente variáveis, e a preocupação em relação à confiabilidade de algumas das descobertas relatadas, não há atualmente evidências de um benefício à saúde resultante do consumo de orgânicos quando comparados aos produtos produzidos convencionalmente. Deve-se notar que esta conclusão diz respeito à base de evidências atualmente disponíveis sobre os nutrientes presentes nos alimentos, que apresentam limitações em seus desenhos e na comparação entre estudos”.

Ou seja: na verdade, com base no método adotado para a seleção dos estudos e depois para a comparação entre eles, a pesquisa só concluiu que hoje não se consegue concluir nada. Bastante diferente de afirmar que “orgânicos não são mais nutritivos do que os convencionais” ou que não trazem benefícios para a saúde.

Vale observar ainda uma declaração da Soil Association, uma das mais importantes organizações do setor orgânico no Reino Unido, dizendo que a FSA falhou ao não incluir no estudo os resultados de uma enorme pesquisa financiada pela União Européia que encontrou níveis maiores de “compostos nutricionalmente desejáveis” em alimentos orgânicos.

Bem, queiram ou não os ingleses da FSA, continuaremos preferindo os alimentos orgânicos por mil e um motivos, inclusive os de saúde.

Os estudos da FSA estão disponíveis em:

http://www.food.gov.uk/news/newsarchive/2009/jul/organic

Com informações de:

– Nota à imprensa da FSA, 30/07/2009.

http://www.food.gov.uk/news/newsarchive/2009/jul/organic

– The Ecologist, 29/07/2009.

http://www.theecologist.org/News/news_round_up/294394/organic_food_report_admits_to_lack_of_evidence.html

Blog dos editores – The Ecologist, 29/07/2009.

http://www.theecologist.org/blogs_and_comments/bloggers/the_editors_blog/294396/fsa_organics_study_read_it_closely


FOLHA DE SÃO PAULO | São Paulo, quinta-feira, 30 de julho de 2009

Alimento orgânico não possui maior valor nutricional

Revisão de artigos publicados nos últimos 50 anos diz que não há evidência de que produtos sem agrotóxico sejam superiores

Especialistas brasileiros defendem o consumo de itens orgânicos por serem cultivados sem adição de substâncias tóxicas

CLÁUDIA COLLUCCI

RACHEL BOTELHO

DA REPORTAGEM LOCAL

Os alimentos orgânicos não têm benefícios nutricionais superiores aos dos alimentos comuns, concluiu a maior revisão de estudos já feita sobre o assunto, com 162 artigos científicos publicados nos últimos 50 anos. O trabalho foi encomendado pela agência de alimentos do governo britânico.

Para os autores da pesquisa, não há evidências que fundamentem a escolha de orgânicos em detrimento dos alimentos produzidos convencionalmente, com base na superioridade nutricional de uns sobre outros. A pesquisa foi publicada ontem no “American Journal of Clinical Nutrition”.

“Existe um número mínimo de diferenças em teor de nutrientes entre os alimentos orgânicos e os convencionais, sem relevância em termos de saúde pública”, disse Alan Dangour, um dos autores do estudo.

Para ele, os consumidores estão pagando preços mais altos por alimentos orgânicos devido a seus supostos benefícios para a saúde, criando um mercado global de orgânicos que movimentou US$ 48 bilhões em 2007. No Brasil, a estimativa do governo federal é que os orgânicos movimentem R$ 500 milhões por ano e envolvam 15 mil produtores, com uma área de cultivo de 800 mil hectares.

Agrotóxicos

Embora reconheçam a semelhança do valor nutritivo dos orgânicos e dos alimentos convencionais, médicos ouvidos pela Folha defendem que os primeiros continuam em vantagem por não serem cultivados com agrotóxico.

“Nutricionalmente, o orgânico não tem diferença em termos de composição, mas se difere em termos de preservação de solo, de forma de cultivo e de uso de agrotóxico. Mas o estudo é importante porque desmistifica um pouco [a superioridade dos orgânicos]”, afirma o nutrólogo Daniel Magnoni, do Hospital do Coração.

Na sua opinião, o consumidor deve procurar sempre uma alimentação saudável e, se tiver condições econômicas, consumir alimentos sem agrotóxicos. “Primeiro você evita gordura saturada, sal e açúcar, depois você pensa no orgânico.”

De acordo com o nutrólogo Edson Credidio, se o preço for um impeditivo para o consumo de alimentos orgânicos, o consumidor pode comprar uma fruta convencional em um estágio mais avançado de maturação e, além disso, colocá-la em um litro de água com uma colher de sopa de bicarbonato de sódio para ajudar a reduzir o agrotóxico residual.

O pesquisador da Embrapa Walter José Matrangolo argumenta que o principal benefício do alimento orgânico é a ausência de produtos tóxicos. “Os agrotóxicos contidos nos alimentos têm consequências crônicas, que podem aparecer ao longo dos anos”, diz.

Ele alerta ainda sobre a “questão ética” dos orgânicos. “Quando a pessoa compra um alimento sem agrotóxico, menos produtos tóxicos são jogados no meio ambiente.”

Rogério Dias, coordenador de agroecologia do Ministério da Agricultura, afirma que é preciso ter cautela com os resultados da revisão científica porque a legislação sobre alimentos orgânicos, na maior parte do mundo, data do início da década de 1990. “Estudos anteriores a isso podem ter seguido padrões diferentes, que nem sabemos quais são.”

Para ele, a principal diferença entre alimentos orgânicos e não orgânicos está no método de produção. “A adubação convencional é reducionista: trabalha com nitrogênio, fósforo e potássio, além de alguns micronutrientes. Já a produção orgânica nutre o solo de forma que as plantas tenham uma riqueza de nutrientes.”