“Ia com o pensamento que as famílias não guardavam sementes. Depois dos cursos, vimos que guardam demais da conta” | Foto: Arquivo Cáritas Diocesana de Araçuaí

 

ASA, 16/03/2016

Levantamento da ASA comprova a rica diversidade das sementes do Semiárido

Diante do cenário mundial da fome e má nutrição e dos efeitos das mudanças climáticas, o valor deste patrimônio genético extrapola os limites da região

Por Verônica Pragana – Asacom

Numa época em que um dos grandes problemas mundiais é a fome e a má nutrição de milhões de pessoas, o Semiárido brasileiro guarda e preserva uma grande variedade de sementes crioulas. A partir do processo de estocagem de água e sementes, a região vem se fortalecendo como um espaço de preservação e multiplicação de um importante patrimônio genético para a humanidade apesar de uma longa e intensa estiagem que acomete a região desde 2012. Um levantamento preliminar do Programa Sementes do Semiárido, da ASA, identificou milhares de variedades de 54 espécies alimentares e medicinais pesquisadas. Só de feijão de corda são 440 variedades, 335 de feijão comum, 322 de milho, 189 de fava, 116 de jerimum e 106 de batata doce.

Os dados foram coletados a partir de entrevistas com 7.380 famílias que vivem e produzem em 442 comunidades rurais de 179 municípios, que corresponde a quase 16% dos municípios do Semiárido. Quando concluída, a pesquisa vai abranger um total de 12,8 mil famílias envolvidas com o Programa Sementes do Semiárido e que desfrutam de água para consumo humano e para produção que foram disseminadas na região, principalmente, pela ASA.

Entre os fatores responsáveis pela situação de insegurança alimentar no planeta está a erosão genética. Há milhares de anos, há indícios da existência de sete mil espécies de plantas cultivadas ou coletadas. Atualmente, na base da alimentação mundial predominam quatro espécies: trigo, arroz, milho e batata, que fornecem mais de 60% da necessidade de energia que vem dos alimentos, segundo o documento em inglês intitulado “Recursos genéticos vegetais usá-los ou perdê-los”, publicado pela FAO.

Essa erosão tem uma forte relação com a mercantilização da alimentação. Como mercadoria, o alimento passa a ser produzido com custos cada vez mais baixos e lucros cada vez maiores para “um reduzido grupo de transnacionais ligadas ao setor do agronegócio, da indústria de alimentos e das redes de supermercados”, como afirma o editorial da Revista Agriculturas sobre alimentação adequada e saudável, publicada em dezembro de 2014.

Sementes de excelência

“Um dos grandes debates na produção de alimentos no mundo está associado aos desafios trazidos com as mudanças climáticas. Nele, as sementes adaptadas às regiões semiáridas e áridas, consideradas até então como grãos no Brasil, são altamente valorizadas pela ciência que quer estudar suas dinâmicas e características. De grão, elas passam a ser consideradas sementes de excelência”, ressalta Antônio Barbosa, coordenador dos Programas Uma Terra e Duas Águas (P1+2) e Sementes do Semiárido.

Glória Araújo, que representa a ASA Paraíba na Coordenação Executiva da ASA Brasil, lembra inclusive que quando as sementes crioulas eram consideradas de menos valor do que as das multinacionais, as famílias tinham vergonha e chegavam a escondê-las em casa. “Essa pesquisa vem visibilizar a cultura camponesa de guardar as sementes que são experimentadas, multiplicadas e selecionadas no agroecossistema familiar. E é através destas práticas que as famílias mostram a capacidade de resistência às ameaças a esse material genético, como as políticas públicas que continuam a valorizar as sementes externas”.

Os dados do levantamento referendam, inclusive, uma demanda antiga da sociedade civil com relação à política pública de distribuição de sementes: a diversificação das variedades entregues a partir das necessidades locais. “Hoje, são distribuídas quatro variedades de feijão, uma por região, e uma de milho, quando temos 322 variedades de milho que atendem a necessidades diversas das famílias agricultoras do Semiárido”, destaca Barbosa. Para Glória, essas informações desafiam as políticas públicas a reforçarem as práticas de preservação e multiplicação de sementes que estão na região há muito tempo.

Origem

Os dados apresentados revelam uma grata surpresa com relação à origem das sementes: 81,46% das sementes vieram da própria comunidade. A maioria delas (38,05%) foram herdadas dos pais, avós. Mas, a depender das espécies, essa origem varia. Enquanto as sementes de jerimum ou abóbora, que está na base da alimentação das famílias, 97,09% vêm da comunidade, as de hortaliças têm um significativo índice de aquisição em lojas. A alface, por exemplo, em 42,19% dos casos são compradas e 43,24% vem da comunidade.

“Antes do P1+2, quase todas as sementes de alface eram compradas”, destaca Barbosa evidenciando o processo de transformação que o Semiárido passa enquanto produtor de alimentos. A circulação das sementes na própria comunidade ou entre comunidades e regiões é uma estratégia que protege as sementes crioulas e é fortalecida pelos intercâmbios e encontros promovidos pelos programas da ASA.

Outra informação importante trazida pela sistematização dos dados diz respeito ao lugar de cultivo das espécies pesquisadas nas propriedades. Mais de 51% do material genético manejado pelas famílias estão no quintal, que é o espaço do entorno da casa que varia de 10 metros quadrados a meio hectare. E 44,9% no roçado das famílias. “Essa pesquisa revelou esse número todo de variedades de sementes tendo focado sua investigação em apenas dois subsistemas da propriedade. Imaginem se tivesse incluído todo o agroecossistema?”, destaca Glória.

A diversidade das comunidades

Entre as localidades pesquisadas, está a comunidade Cabral, na área rural do município de Pedro II, no Piauí, onde vive e produz a família de Antônio Alves Pereira e Francisca Francinete, ambos guardiões de sementes crioulas. Lá, foi construída uma casa de sementes comunitária para estocar o material genético que fica à disposição de todas as famílias da comunidade para plantio. A lógica da gestão das casas ou bancos de sementes é o empréstimo de uma quantidade e devolução de uma quantia maior, que não precisa ser, necessariamente, do mesmo tipo das sementes retiradas da casa, caso a colheita não tenha sido suficiente.

“O resgate das águas e das sementes são a melhor coisa que vi na vida”, declara seu Antônio, que, na região onde mora, é conhecido como Antônio Zifirino, por ser filho de Zifirino. “Antes das casas [comunitárias], já existiam as casas de famílias, que guardavam as sementes de plantar e os grãos de comer. Na década de 1970, deu uma seca forte, quando acabou os grãos comestíveis, as famílias iam pras sementes de plantar. As sementes que vão para as casas são iguais ao dinheiro que a gente coloca no banco e a gente esquece lá pra um dia poder pegar. Se ficasse em casa, a gente gastava tudo.”

Seu Antônio, que além de ser agricultor e guardião de sementes, é profeta da chuva e poeta, não imaginava que na sua comunidade tinha tantas variedades de semente. Ele reconhece que os intercâmbios ajudam bastante no resgate e ampliação do material genético local. “Com os intercâmbios, trazemos as sementes de outras comunidades e região pra cá. Se viver escondido, tem conhecimento?”.

O programa Sementes do Semiárido tem várias fases. A primeira é identificar as sementes ainda existentes. Com isso, as comunidades despertam para as sementes perdidas que precisam ser resgatadas. E a segunda fase incentiva a multiplicar o material genético que vai ser estocado nos bancos ou casas de sementes comunitárias para uso quando as famílias precisarem. Vale destacar que nem todas as sementes das famílias são armazenadas nos bancos comunitários. Lá, se guardam algumas variedades em grande quantidade para garantir o plantio. “O estoque da diversidade fica nas casas das famílias”, explica Barbosa.

“Cada comunidade faz a gente ficar mais besta. Ia com o pensamento que as famílias não guardavam sementes. Depois dos cursos, vimos que guardam demais da conta.” O depoimento é de Valteir Antunes, guardião de sementes da região do Vale de Jequitinhonha, em Minas Gerais. Ele é gestor do banco de sementes comunitário mais antigo de Minas, a Casa de Sementes da Gente e do Amor, na comunidade Caldeirão, em Itinga, onde vive. Essa casa é um verdadeiro banco de germoplasma, abriga mais de 120 variedades de milho, feijão, sementes nativas e hortaliças.

O conhecimento e experiência de Seu Valteir com relação às sementes crioulas o têm levado a visitar cerca de 60 comunidades ao longo do Rio Jequitinhonha. O principal motivo da sua andança é que ele assumiu o papel de facilitador das capacitações do Programa Sementes. E, desde então, seu Valteir passou a testemunhar o amor e carinho que cada família dedica às sementes crioulas. “A família guarda logo. São todas naturais”.