Valor Econômico, 29/10/2012 

Quão vulneráveis são os países latino-americanos ao aumento do preço dos alimentos nos mercados internacionais, previsto como consequência da seca que assolou o meio-oeste dos Estados Unidos? Em vez de ser uma ocorrência ocasional, a extrema volatilidade dos preços dos alimentos que se observou nos anos 2007-2008 agora tornou-se a norma, com os preços atingindo uma alta perigosa em 2010-2011 e tendendo a aumentar de novo.

Poderia-se pensar que, como uma grande produtora e exportadora de produtos agrícolas, a América Latina está certamente em uma boa posição para atravessar essa tempestade, e poderia até mesmo ganhar com o aumento dos preços. Os ganhos do crescimento agrário recente da América Latina têm, na realidade, beneficiado poucas áreas dentro de cada país, principalmente os maiores produtores, que cultivam produtos específicos e que gozam de amplo acesso aos mercados internacionais. Enquanto isso, a maioria das pessoas vulneráveis à fome na América Latina vivem nas zonas rurais onde são produzidos alimentos, mas são essencialmente compradores, e não vendedores, de alimentos. Para essas pessoas, como para os milhões de pobres vivendo em zonas urbanas, a alta do preço dos alimentos significa uma pressão adicional em orçamentos familiares já sobrecarregados.

O aumento da produção agrária não constrói, por si só, uma rede de proteção para os mais vulneráveis. O que então pode ser feito para proteger essas populações contra os impactos dos choques de preço globais, e em que medida estão os países latino americanos adotando as políticas necessárias?

Dar proteção constitucional ao direito à alimentação dá direção a uma variedade de políticas estatais. A fome não é mais tratada como consequência inevitável de choques globais que podem apenas ser enfrentados pela caridade e por medidas de emergência.

Neste ponto as notícias são claramente positivas. Ao final de agosto, enquanto as colheitas americanas estavam sendo arrasadas pela seca, políticos de toda a América Latina e Caribe encontravam-se na Guatemala para o terceiro fórum anual da Frente Parlamentar Regional Contra a Fome. Essa rede encarna o compromisso pioneiro dos atores políticos da região para tratar das causas reais da fome, e para compartilhar conhecimento e experiências sobre como combatê-la.

Uma revolução das ideias ocorreu: a fome não é mais tratada como uma consequência inevitável de choques globais que podem apenas ser enfrentados pela caridade e por medidas de emergência. Ao contrário, entende-se cada vez mais que a fome é um problema que transcende os ciclos econômicos e que tem tanto a ver com acesso e inclusão social quanto tem com colheitas e rendimento agrícola. O que importa não é apenas quanta comida é produzida, mas como, para quem ela é disponibilizada, e sujeita a que obstáculos. Entender a segurança alimentar deste modo significa entender que a alimentação é um direito – e um direito que pode ser negado quando sistemas políticos não pensam em termos de acesso e de disponibilização.

Os países da América Latina despertaram para a necessidade de adotar uma política balizada pelo direito à alimentação: leis-quadro fundadas no direito à alimentação foram adotadas em sucessão rápida na Argentina, Guatemala, Equador, Brasil, Venezuela e Nicarágua nos últimos dez anos. Dos vinte e quatro países que consagraram explicitamente o direito à alimentação em suas constituições, quinze são da América Latina e do Caribe.

Dar proteção constitucional ao direito à alimentação dá direção a uma variedade de políticas estatais. O Brasil adotou um Plano de Segurança Alimentar e Nutricional para o período 2012-2015 envolvendo dezenove ministérios e estabelecendo um sistema de monitoramento contínuo e de avaliação do progresso obtido na realização do direito à alimentação. Dois terços dos membros do comitê de supervisão das políticas vêm da sociedade civil. Neste, bem como em outros países, a participação e a responsabilização – ferramentas para manter as políticas setoriais afinadas com as necessidades dos mais vulneráveis – são cada vez mais integradas na estrutura das políticas nacionais de segurança alimentar. Enquanto isso, a inscrição do direito à alimentação no âmbito jurídico permite às pessoas questionar uma variedade de leis e políticas públicas que afetam seu acesso à uma alimentação adequada.

Apesar desses progressos, como explicar que tantas pessoas na América Latina sejam ainda vulneráveis à próxima alta de preços nos mercados internacionais? Serão necessárias políticas nacionais mais ambiciosas, a proteção do orçamentos para as políticas de segurança alimentar, a adoção de mecanismos de monitoramento mais fortes e mais casos de advocacia estratégica antes que a fome seja derrotada. O progresso não virá necessariamente da redução do preço dos alimentos: será assegurado pela garantia do direito à terra, uma vinculação da renda dos mais pobres ao custo real dos alimentos, e muitos outros passos tendendo a garantir às populações marginalizadas a habilidade de produzir ou de obter alimentos adequados. Os combates individuais e coletivos para realizar esses progressos vão continuar, mas os vulneráveis terão o direito ao seu lado.

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Olivier De Schutter é o relator especial da ONU para o direito à alimentação. Em 1º de outubro ele publicou o informe “Implementando o Direito à Alimentação no Nível Nacional na América Latina e no Caribe”, reunindo as experiências discutidas durante uma consulta regional realizada em Bogotá, Colômbia.