CARTA AGROECOLÓGICA DE BELÉM

 

Com o tema Diversidade e Soberania na Construção do Bem Viver, o IX Congresso Brasileiro de Agroecologia e IV Encontro Estadual de Agroecologia reuniram entre os dias 28/09 e 01/10/2015, em Belém-PA, 3742 profissionais do ensino, da pesquisa e da extensão, estudantes, agricultores e agricultoras, representantes de povos indígenas e de povos e comunidades tradicionais de todo o Brasil.

 

Frente ao aprofundamento da crise de civilização que confronta a humanidade a perigosos limites, a emergência da noção do Bem Viver no debate político ressalta a falência do modelo de desenvolvimento hegemônico, assentado em formas violentas de apropriação privada de bens da natureza, de exploração do trabalho humano e de expropriação de direitos, a começar pelo direito à Vida. A construção do Bem Viver é uma tarefa civilizatória orientada pelos princípios da cooperação e da solidariedade. Antepõe-se aos fundamentos do liberalismo econômico que incitam indivíduos à luta pelo Viver Bem com base na competição mercantil e na destruição das possibilidades do Bem Viver coletivo. A construção do Bem Viver depende da ação coletiva do local ao global. A soberania dos povos e comunidades de decidir sobre seus meios e modos de vida surge, nesse contexto, como um fundamento político orientador das lutas sociais.

 

A realização do IX CBA na região amazônica permitiu uma mostra de suas diversidades e realçou vários aspectos importantes referentes ao papel da agroecologia na construção soberana do Bem Viver. Frente ao papel estratégico da Amazônia na manutenção do equilíbrio planetário, as iniciativas agroecológicas desenvolvidas na região aportam

importantes subsídios ao aprimoramento do enfoque agroecológico, inspirando o aprimoramento e disseminação de iniciativas em outros Biomas brasileiros.

 

Os debates e trabalhos apresentados no CBA-Agroecologia expressaram a riqueza e a diversidade das formas de construção de conhecimentos em interação com organizações sociais e movimentos populares. Camponeses e camponesas, representantes de povos e comunidades tradicionais e de povos indígenas marcaram forte presença no evento demonstrando seu papel como portadores de memórias bioculturais, guardiões da agrobiodiversidade, criadores e recriadores de práticas e saberes que se atualizam através das gerações. Eles conformam a base sociocultural da construção do Bem Viver para o conjunto da sociedade brasileira. Como enfoque científico, a agroecologia atua na sistematização e no apoio ao desenvolvimento das práticas sociais, técnicas e econômicas inscritas nessas memórias bioculturais.

 

No entanto, nossas reflexões revelam que a perspectiva agroecológica não se desenvolverá enquanto perdurarem e se aprofundarem violações de direitos e ameaças sofridas pela agricultura camponesa, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais. Ao reafirmar a impossibilidade de convivência e conciliação entre a lógica expansiva e predatória do agronegócio e os estilos de gestão econômico-ecológica da agricultura camponesa e dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, o IX CBA-Agroecologia alinha o seguinte conjunto de denúncias, cobranças e proposições:

 

– O direito histórico ao livre uso da agrobiodiversidade bem como a saúde da população e a soberania nacional estão sendo severamente ameaçados por iniciativas de setores econômicos ligados às indústrias e ao agronegócio junto ao Congresso Nacional.

 

Destacamos as seguintes: a aprovação da Lei 13.123/2015, que normatiza o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, num claro favorecimento às indústrias ligadas ao setor fármaco e ao agronegócio; a recolocação na pauta do Projeto de Lei 2.325/07, que altera o reconhecimento dos agricultores familiares e povos tradicionais como melhoristas; e a tramitação dos Projetos de Lei: 827/15, que criminaliza o uso de sementes crioulas; 1.117/15, que autoriza os OGMs Terminator (sementes estéreis); e 34/15, que retira a rotulagem dos OGMs.

 

– Denunciamos e repudiamos o Decreto 8.405/15, do poder executivo, que viola os direitos dos povos e comunidades tradicionais ao definir o Pescador Artesanal como

não-agricultor, e que atribui às mulheres a condição de ajudantes, relegando-as a um papel de subordinação incompatível com o objetivo de construção de uma sociedade justa e igualitária.

 

– Manifestamos nosso apoio incondicional à luta dos povos irmãos na América Latina contra as ameaças aos direitos coletivos sobre a agrobiodiversidade, sobretudo pelo direito de não contaminação genética das variedades crioulas em função da liberação do plantio de variedades transgênicas da Monsanto, da Syngenta, da Basf e da Bayer e de outras empresas, muitas vezes apoiadas pelos governos nacionais. Manifestamos, em especial, o apoio aos movimentos Sin Maiz No Hay Pais e Red Semillas, do México, centro de origem do milho, que nesse momento travam luta na justiça pelo direito de não-contaminação desse patrimônio genético legado à Humanidade pelos povos centroamericanos.

 

– Tendo em vista, que uma alimentação saudável é direito da cidadania, exigimos alteração nas políticas vigentes, com democratização do acesso a informações e estímulo ao protagonismo social. Urge que todos possamos, em escolhas de consumo consciente, bem informado e responsável, evidenciar os setores e atividades da economia de mercado que devem ser estimulados ou refreados pelo governo. Reivindicamos consultas populares e audiências públicas sobre temas relevantes para a sociedade. Entendemos ainda que iniciativas de grupos organizados, a exemplo da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, do Fórum Permanente Contra os Agrotóxicos, da Articulação Nacional de Agroecologia e as manifestações expressas nas Conferências sobre Segurança Alimentar e Nutricional realizadas em todo o país, entre outros espaços de mobilização social, devem ser interpretadas como sinalizações da vontade popular, elementos orientadores de iniciativas que cobramos do Estado, com vistas à produção e ao consumo de alimentos saudáveis e à proteção da saúde coletiva e ambiental.

 

– Denunciamos a manipulação da ciência institucionalizada em benefício de interesses econômicos de algumas poucas corporações dos setores industrial e financeiro. A ciência não pode continuar sendo utilizada para legitimar a agroquímica e a transgenia, travestindo-as de soluções únicas para necessidades sociais inadiáveis. São exatamente essas falsas soluções que estão na origem e agravam os problemas que afirmam

resolver. Cobramos a independência das instituições científico-acadêmicas com relação aos interesses corporativos, tendo o primado da Ética como orientador de sua agenda e de sua prática. Defendemos uma ciência crítica feita com o povo. Por essa razão, atuaremos no fortalecimento de articulações latinoamericanas entre grupos de pesquisadores independentes e comprometidos com esses princípios.

 

– Reafirmamos que a soberania e segurança alimentar e nutricional somente será alcançada com a realização de uma ampla reforma agrária de base popular e agroecológica, que seja capaz de democratizar o acesso à terra, valorizando a diversidade biocultural, dinamizando as economias locais e assegurando a produção de alimentos saudáveis para as populações do campo, das florestas, das águas e das cidades.

 

– Quaisquer instrumentos de políticas para a diminuição da degradação ambiental e do desmatamento, bem como para a conservação e preservação ambiental, tais como REDD+, não podem prevalecer sobre os direitos à terra e ao território dos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais ou se vincularem a mecanismos de compensação mediados pelo mercado financeiro.

 

– No que tange a construção do conhecimento agroecológico, repudiamos o fechamento de centenas de escolas do campo em todo o país e a ofensiva pela privatização do ensino, com o repasse de recursos públicos para a iniciativa privada. Reivindicamos uma educação pública, gratuita e de qualidade, baseada na multiculturalidade e na transdisciplinaridade, rompendo com a monocultura do saber, que nega e silencia a diversidade de saberes, em especial os dos sujeitos dos campos, das florestas e das águas.

 

– Reafirmamos que os Núcleos de Agroecologia que se multiplicam em dezenas de universidades, institutos federais e instituições de pesquisa, são um exemplo consistente de avanço de modalidades diferenciadas de construção de conhecimentos nas instituições públicas de ensino e pesquisa no país. Reconhecemos os grupos de agroecologia protagonizados pelos estudantes como espaços de promoção e construção do conhecimento agroecológico que devem ser fortalecidos e incentivados. Reivindicamos a continuidade e ampliação de iniciativas que consolidem e articulam

esses núcleos e grupos, transpondo barreiras que separam o ensino, a pesquisa e a extensão e rompendo com o difusionismo tecnológico próprio do paradigma da modernização agrícola.

 

– Estamos atentos ao Projeto de Lei do Senado n° 531/2015 que propõe a regulamentação da profissão de agroecólogo. Não apoiaremos qualquer iniciativa que cerceie e crie impedimentos à atuação dos profissionais das diversas áreas do conhecimento relacionadas ao campo agroecológico com o objetivo de criar reservas de mercado. Qualquer iniciativa de regulamentação nesse campo deve ser amplamente debatida com a efetiva participação do movimento agroecológico.

 

– Denunciamos o fechamento e desmantelamento de extensão rural pública com cortes orçamentários e diminuição do quadro de trabalhadores(as) de empresas e instituições estaduais. Esse processo se faz no exato momento em que o governo federal se propõe universalizar as ações de ATER para a agricultura familiar, povos e populações tradicionais e povos indígenas. Defendemos uma ATER pública e agroecológica, com enfoque sistêmico e territorial, que incorpore as dimensões de gênero, reposicionando os papeis sociais e as responsabilidades das mulheres e dos homens na atividade produtiva e na organização social.

 

– Defendemos que todas as chamadas públicas de ATER sejam elaboradas a partir da perspectiva agroecológica, valorizando as sabedorias das camponesas, camponeses, povos e comunidades tradicionais, e favorecendo a dialogicidade entre os diferentes sujeitos envolvidos na promoção do Bem Viver.

 

– As mulheres se fizeram presentes no IX CBA e demonstraram seu protagonismo na produção agroecológica e na produção de conhecimentos que rompem com o patriarcalismo. A voz e a sabedoria das mulheres estão intrinsicamente atreladas à promoção da Vida. O conhecimento das mulheres é construído de forma solidária e coletiva, rompendo com o individualismo competitivo e a racionalidade da ciência moderna. A participação das mulheres é fundamental para a construção da sociedade justa, igualitária e agroecológica que desejamos. Reafirmamos que o combate ao capitalismo e ao agronegócio não será bem sucedido enquanto não compreendermos

que o patriarcado é um dos elementos estruturantes das desigualdades sociais. O IX CBA reitera que Sem Feminismo não há Agroecologia.

 

– Reiteramos também a importância do protagonismo juvenil na promoção e construção do conhecimento agroecológico. Os integrantes da Rede dos Grupos de Agroecologia se sentem cada vez mais fortalecidos e unidos a cada Encontro Nacional de Grupos de Agroecologia (ENGA) e a cada Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA-Agroecologia). Estendemos que espaços como esses possibilitam a aproximação, confiança e diálogo entre redes e organizações que pautam a Agroecologia, acolhendo as juventudes.

 

– Os representantes de povos indígenas presentes no IX CBA-Agroecologia manifestam os seus entendimentos, percepções e posicionamentos sobre a Agroecologia enquanto ciência, prática e movimento social. Compreendem que as bases que a fundamentam são coerentes com as cosmovisões dos povos indígenas e sua relação histórica com a natureza e os elementos do Bem Viver. Manifestamos a necessidade de ampliar a rede de solidariedade para com os povos originários como condição imprescindível para o avanço da Agroecologia. As ameaças aos povos indígenas implicam retrocessos e perdas para a sociedade brasileira. As proposições legislativas anti-indígenas que tramitam no Congresso Nacional, no Executivo e no Judiciário (PEC 215, PEC 098, Portaria 303 e PL 227) ameaçam não só os direitos dos povos originários garantidos na Constituição Federal, mas também o direito de todo o cidadão brasileiro em ter um ambiente sadio e equilibrado. O IX CBA-Agroecologia repudia veementemente essas iniciativas.

 

– A Agroecologia é uma proposta contra-hegemônica que faz sua luta também na esfera ideológica. A democratização dos meios de produção e veiculação do conhecimento é condição indispensável para romper com o monopólio da mídia corporativa comprometida com a reprodução do capital e subordinada a interesses das transnacionais.

Esperamos do governo federal sinalizações concretas e imediatas de compromisso com o atendimento das propostas que aqui apresentamos. O imediato lançamento do

Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA), tal como pactuado no Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO); a retomada das concepções originais do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), inclusive para o fortalecimento de redes locais de conservação da agrobiodiversidade; o fortalecimento de ministérios e órgãos ameaçados pelo interesses de forças conservadoras dentro do próprio governo. Não aceitamos que esta agenda, que sinaliza para saídas estruturais à crise de civilização, seja comprometida pelo ajuste fiscal. O ônus do ajuste deve recair sobre aquelas atividades e grupos econômicos responsáveis pela tragédia socioambiental que se agrava sobre a sociedade brasileira.

 

O II Planapo deve trazer avanços substanciais tanto em termos orçamentários quanto nas iniciativas necessárias para fazer avançar a Agroecologia como enfoque para a reestruturação dos sistemas agroalimentares, contribuindo para superar as desigualdades sociais e a degradação ambiental. Deve também avançar nos mecanismos de participação e controle social bem como na articulação coordenada entre ministérios e órgãos do governo brasileiro.

 

Manifestamos nosso firme posicionamento contra qualquer ameaça sobre a democracia e tentativa de retirada de direitos duramente conquistados. Reafirmamos a necessidade de continuarmos ativos e vigilantes, mantendo a disposição para lutar em defesa dos princípios democráticos e pela Agroecologia.

 

Saímos fortalecidos de nosso encontro. A Agroecologia amazônica enrique e inspira nosso movimento que vem há décadas se construindo em todo o Brasil. Voltaremos a nos encontrar em Brasília em 2017. Até lá…

 

Belém, 01 de outubro de 2015