reportagem de Raquel Júnia – Escola Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
26/11/2010
O agricultor Nilson Ribeiro pensou em vender a pequena propriedade rural de quatro hectares onde morava e trabalhava, na comunidade Santo Antônio do Rincão, distante cerca de 18 quilômetros do município de Anita Garibaldi, em Santa Catarina. Os dois filhos do agricultor, que também trabalhavam na terra, foram embora para outro município à procura de emprego. Mas, na época, Nilson não encontrou comprador para o sítio e decidiu insistir um pouco mais na produção agroecológica. Há cerca de quatro anos, ele passou a escoar os alimentos produzidos por meio de um programa do governo federal de aquisição de alimentos da agricultura familiar – o PAA, o que fez com que ele conseguisse pagar dívidas e mudar de ideia quanto à venda do sítio. Atualmente, Nilson entrega também alimentos para as escolas de Anita Garibaldi e é coordenador da filial da Cooperativa Ecológica Ecosserra no município. Com a melhoria na renda da propriedade, os filhos do agricultor voltaram para a terra, e, hoje, enquanto eles cuidam da produção na roça, onde também vivem, o pai fica na cidade, coordenando os trabalhos da cooperativa.
Nilson é apenas um de vários agricultores familiares que conseguem, por meio da coletividade e do auxílio de políticas públicas, produzir de forma ecológica e prover o próprio sustento e o de familiares. Os resultados desta prática, garante o agricultor, são bons não apenas para quem produz, mas também para a população que passa a consumir alimentos saudáveis provenientes da agroecologia. A lei federal 11.947/2009 determina que pelo menos 30% da alimentação escolar deve ser composta por alimentos provenientes da agricultura familiar. E, de acordo com a resolução nº 38, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), os produtos agroecológicos devem ser prioritários na lista de compras das prefeituras e estados. Com base nestas legislações, os agricultores da agroecologia de Anita Garibaldi têm fornecido alimentos para as escolas da região. “No caso de Anita Garibaldi, a Ecosserra fornece todos os 30% de alimentos da agricultura familiar para as escolas. Então, os produtos são todos agroecológicos”, fala Nilson. O agricultor explica que o contrato com a prefeitura para o fornecimento de produtos foi de aproximadamente R$ 80 mil. “São sete grupos fornecendo e em cada grupo há uma média de cinco famílias produzindo na agroecologia, com propriedades certificadas. No ano dá uma renda de aproximadamente R$ 4 milpor família. Eu digo que isso foi importantíssimo não só para a minha família, mas para todas as famílias”, acrescenta. O engenheiro agrônomo e conselheiro de administração da Ecossera, Natal Magnanti, explica que ainda que o dinheiro pareça pouco, é importante para as famílias porque elas têm a garantia de contar com o recurso para movimentar a propriedade.
Os agricultores fornecem alimentos para 11 escolas do município. Produtos como o feijão, hortaliças e frutas fazem parte das 35 variedades entregues pelos trabalhadores rurais. De acordo com o FNDE, 1.576 municípios brasileiros estão cumprindo a legislação e comprando no mínimo 30% de alimentos da agricultura familiar para as escolas – o número representa cerca de 28% do total de municípios do país. Entretanto, dos 5.656 municípios brasileiros, apenas 3.136 responderam ao questionário enviado pelo FNDE sobre o cumprimento da legislação, portanto, o órgão chama atenção para o fato de que os números podem ser mais expressivos. Ainda segundo o fundo, outros 434 municípios estão fazendo chamadas públicas para incluírem os produtos da agricultura familiar no cardápio das escolas nos próximos anos. Os dados são de uma pesquisa recente apresentada durante o 5º Encontro Nacional do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), realizado em meados de novembro em Salvador. A pesquisa mostra também que 115 tipos diferentes de produtos são comercializados e que as compras acontecem mais nas regiões onde os agricultores estão mais organizados em associações e cooperativas. Os estados com mais municípios cumprindo a legislação são os três da região sul – Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, além de Espírito Santo e Sergipe. Em segundo lugar estão os estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e Ceará.
A lei 11.947/2009 assegura também que o cardápio das escolas deve ser “elaborado de acordo com a cultura alimentar local, buscando sustentabilidade, diversificação agrícola, alimentação saudável e adequada”. No caso do município de Anita Garibaldi, entre os produtos entregues pela agroecologia às escolas estão alimentos característicos da região, como o pinhão, fruto da Araucária, típica do sul do país. A nutricionista Cristina Ramos, representante da Associação Catarinense de Nutrição no Conselho de Segurança Alimentar de Santa Catarina (Consea-SC) explica que a inclusão de alimentos agroecológicos na merenda escolar significa um enorme ganho na segurança alimentar dos estudantes. “Além de estar fortalecendo a agricultura familiar e os produtores agroecológicos, mantendo um mercado garantido para eles, com isso se promove uma alimentação saudável, livre destes aditivos químicos e agrotóxicos dos alimentos. É preciso pensar em ampliar destes 30 para 100%, com a prioridade nos alimentos agroecológicos”, propõe.
Desafios
Apesar dos claros benefícios da agroecologia na merenda escolar, os agricultores ainda se deparam com algumas barreiras antes de conseguirem fechar os contratos com as prefeituras. Junto com outros agricultores familiares, Nilson participou nos dias 16 e 17 de novembro da Oficina Territorial de Agroecologia do Planalto Serrano Catarinense, uma iniciativa que teve o objetivo de reunir os trabalhadores rurais para discutir os desafios da produção agroecológica e mapear as iniciativas da região. Durante a oficina, os participantes relataram, por exemplo, a dificuldade das nutricionistas responsáveis pela merenda escolar nos municípios em compreenderem a dinâmica da agroecologia. Segundo os agricultores, muitas vezes não há uma compreensão, por exemplo, sobre a não oferta de determinados produtos em alguns períodos do ano, devido à descontinuidade da produção, ou seja a sazonalidade.
Natal explica que a agroecologia tem como princípio justamente entender esta dinâmica da sazonalidade. “Se a barra for forçada para se produzir determinado alimento fora da época, se estará indo contra algo que é natural, portanto contra um dos princípios da agroecologia”. De acordo com os agricultores presentes na oficina, o ideal seria que as prefeituras aceitassem que determinados produtos que têm sazonalidade definida possam ser substituídos por outros de valor nutricional parecido em certas épocas do ano. “É preciso ter ainda muita capacitação dos gestores públicos. Muitos compram apenas para cumprir a lei e isso não tem nada a ver com a ideia do Programa Nacional de Alimentação Escolar de ter um abastecimento de forma regional, de provocar a discussão do desenvolvimento local. A maioria dos gestores não se interessa por isso. Eles compram os 30% [de alimentos da agricultura familiar] porque a lei obriga, mas não compram 32% ou 100%, e isso precisa ser trabalhado num longo processo”, pontua.
O agrônomo destaca que o valor destinado à alimentação escolar por aluno pelo FNDE ainda é muito pequeno – R$ 0,30 por aluno ao dia. “Esse valor deveria ser maior para que se tivesse uma alimentação mais diversificada, para comprar as proteínas que são a cada dia mais caras e até para diversificar mais as frutas, já que o que se vê na alimentação das crianças é apenas banana e laranja, que são produtos mais baratos. Mas quando é que terão a oportunidade de comer uma maçã ou uma fruta de caroço?”, questiona.
A resolução 38 do FNDE, que trata da alimentação escolar, também diz que a educação alimentar deve ser um tema gerador na escola para ser discutido de maneira transversal entre professores e estudantes. Para os agricultores familiares do planalto serrano catarinense, a escola pode ajudar a mudar a concepção de alimentação que se tem hoje. “A escola é um dos ambientes onde se forja o hábito alimentar das pessoas e isso se transfere inclusive para a casa. Por exemplo, o leite em pó se popularizou por meio da alimentação escolar, e foram pelo mesmo caminho ‘coisas malucas’, como a sopa em pó, que hoje é uma febre”, destaca Natal. Para ele, é preciso haver mais troca de informações entre os agricultores e outros profissionais, como professores e nutricionistas. Cristina Ramos concorda: “Há profissionais da nutrição que nunca ouviram falar sobre produção agrícola de base ecológica. Na maioria dos casos é um problema na formação, que é centrada na questão biológica, sem levar em conta a alimentação adequada”, comenta.
Em Anita Garibaldi, conforme relata Nilson, no início do processo de entrega dos produtos da agroecologia para as escolas, os agricultores sentiam muitas dificuldades. Tinham inclusive medo de chegar até a escola, conversar com os professores e as merendeiras. “Em 90% dos casos, eu tinha que ir junto”, relata o agricultor. Aos poucos, os agricultores começam a se sentir mais à vontade e, para que haja uma troca maior entre eles e os professores, está previsto um encontro entre os dois atores ainda neste ano. “Hoje, a maioria dos agricultores encontra a diretora e os professores na rua e eles se cumprimentam, conversam. Então, isso inclusive aumenta a sociabilidade”, conta Nilson.