Enquanto o Ministério da Saúde estuda o grau de toxicidade do pesticida, um telegrama revela como a Embaixada norte-americana pressiona o Ministério da Agricultura e a província do Chaco, na Argentina.
A reportagem é de Santiago O’Donnell e publicada no jornal Página/12, 09-03-2011. A tradução é do Cepat (via IHU Unisinos).
A Embaixada dos Estados Unidos defendeu o uso do questionado pesticida glifosato diante de autoridades do Senasa, o organismo responsável pela garantia e certificação da saúde e qualidade da produção agropecuária. De acordo com um telegrama diplomático de julho de 2009 filtrado pelo Wikileaks, e ao qual o Página/12 teve acesso, a Embaixada tomou a decisão de apresentar estudos próprios ao regulador que havia autorizado o uso do pesticida depois que este jornal revelara um estudo científico alertando sobre a possível toxicidade do produto.
O lobby norte-americano a favor do fabricante do pesticida, a multinacional Monsanto, aconteceu seis meses depois que a presidente Cristina Fernández Kirchner ordenara ao Ministério da Saúde iniciar uma investigação oficial sobre os possíveis efeitos nocivos do pesticida. O estudo, que ainda está em andamento, servirá de base para limitar ou eventualmente proibir o uso do glifosato, caso ficar demonstrado que efetivamente é nocivo à saúde da população, como sugere o trabalho questionado pela Embaixada, realizado pelo toxicólogo Andrés Carrasco com embriões de frango.
Segundo o telegrama, para a Embaixada, Carrasco é um pesquisador do “prestigioso” Conicet e da “muito respeitada” Universidade de Buenos Aires. Mas seu estudo não seria “cientificamente crível” porque não tinha sido referendado por essas instituições nem incluído em uma publicação científica.
“Dentro dos círculos científicos e das agências regulatórias responsáveis pela aprovação do uso do glifosato na Argentina, se aceita que o suposto estudo não tem credibilidade científica. Os resultados não foram apresentados para uma análise de metodologia, procedimentos e/ou conclusões”, diz o telegrama.
Como a coca
Para contra-arrestar o que qualificou de “campanha da imprensa pró-governo”, a Embaixada norte-americana entregou informações ao Senasa favoráveis ao uso do glifosato, assinala o despacho.
“Em resposta à controvérsia, a Secretaria de Agricultura da Argentina (através do Senasa) esteve reunindo informações para apoiar sua aprovação do uso de glifosato na Argentina. A seção da Argentina da Embaixada deu ao Senasa informações sobre estudos de glifosato, que são de uso comum nos Estados Unidos e também são usados no programa de erradicação da coca do Plano Colômbia”.
O telegrama também explica o interesse da Embaixada em defender o uso do pesticida: “O glifosato é o ingrediente ativo do popular pesticida Roundup. A Monsanto tem a principal fatia do mercado de glifosato na Argentina, com 40%, e, portanto, é a vítima circunstancial mais proeminente e mais vulnerável aos ataques”.
No entanto, o telegrama não faz referência a estudos científicos previamente realizados sobre a toxicidade do glifosato da Universidade de Caen e do Centro Nacional de Pesquisa de Roscoff, ambos da França, da Universidade de Pittsburg (Estados Unidos), da Universidade Nacional de Rosário e da Universidade Nacional do Litoral, mesmo que estes estudos tenham sido citados no artigo do Página/12 do jornalista Darío Aranda sobre o trabalho de Carrasco. O telegrama também não diz nada sobre os diferentes estudos de autoridades sanitárias no interior do país alertando para as altas taxas de câncer e malformações em zonas fumigadas.
Quanto à validação do estudo de Carrasco, o mesmo foi publicado em agosto do ano passado pela revista científica Chemical Research in Toxicology, num artigo de 10 páginas, que inclui todos os dados necessários para ser revisado pela comunidade científica. Nesse ambiente, a publicação de um estudo em uma reconhecida revista científica é considerada como uma aceitação de sua seriedade. Os telegramas de Wikileaks só cobrem despachos escritos até o começo do ano passado, razão pela qual não indicam se a Embaixada deu conta da publicação e corrigiu sua percepção inicial sobre o trabalho do pesquisador argentino.
Fumigações
Em relação ao uso do glifosato feito pelos Estados Unidos, não se trata de uma situação análoga à de outros países porque a concentração do pesticida, das outras substâncias tóxicas com que é misturado e a forma de aplicação não são as mesmas, alertam os cientistas: “Assim, os conceitos sobre segurança para o ambiente e a saúde, emitidos a partir da caracterização e avaliação de riscos calculados para as ‘condições normais recomendadas de uso’ nos Estados Unidos, não tem base científica em nosso meio”, explica a engenheira agrônoma, bióloga e química colombiana Elsa Nivia no sítio biodiversidadla.org.
“Na Colômbia se está aplicando o glifosato sobre plantações ilícitas e tudo o que o circunda, e numa concentração até 26 vezes maior, com o agravante de que é adicionado o surfactante Cosmo-Flux 411F, que pode até quadruplicar a ação biológica do Roundup. A esta lamentável situação se acrescenta algo mais perverso: há denúncias de várias passadas das avionetas quando fumigam sobre zonas camponesas; quatro, seis e até 12 vezes fumigam o mesmo campo”, assinala a pesquisadora.
Os protestos do governo equatoriano levaram a Colômbia a suspender as fumigações com glifosato na fronteira com esse país.
“Denúncias graves”
Em janeiro de 2009, em um discurso em que anunciou novas medidas para o campo, a presidente argentina informou sobre a abertura de uma pesquisa oficial sobre a toxicidade do glifosato. “Também tomamos conhecimento nestes dias, porque foi profusamente divulgado por muitos meios de comunicação, e inclusive há uma medida da Justiça de Córdoba, sobre a fumigação na qual são utilizados determinados agroquímicos, quanto às proibições de não fazê-lo perto de povoados pelo que isto representa de impacto à saúde da população”, disse Cristina Kirchner. “Mesmo que isso seja de competência exclusiva de municípios e províncias, pedi à senhora ministra da Saúde que realize uma investigação, porque me parece que são fatos muitos importantes, fazem mal à saúde de todos os argentinos e aí não se pode entrar em questão de competências e jurisdições: tem que colocar à disposição todos os elementos, porque são denúncias muito graves e, além disso, porque até as próprias justiças provinciais intervieram por casos de contaminação de agentes cancerígenos, etc.”, explicou, e prometeu acompanhar o tema “de perto”.
La Leonesa
Das diferentes denúncias às quais a Presidente fez referência, talvez a mais grave provém da província do Chaco. No ano passado, um juiz provincial suspendeu as fumigações nos arrozais por 90 dias na localidade de La Leonesa e ordenou à província um estudo sobre os efeitos do glifosato nessa população. A Comissão Provincial de Pesquisa de Poluentes da Água publicou o relatório em agosto de 2010. Adverte que nos últimos 10 anos em La Leonesa triplicaram os casos de câncer em crianças menores de 15 anos na localidade e que quadruplicaram os casos de malformações em recém nascidos e que isto coincidiu com o auge da exploração de arroz na zona do departamento Bermejo.
Cientistas e ambientalistas denunciaram repetidamente a falta de resposta do governo provincial frente à ameaça sanitária. O próprio Carrasco foi agredido por funcionários locais quando visitou La Leonesa em 2009 em uma ocasião em que foi chamado para falar sobre os perigos do glifosato, de acordo com denúncia da Anistia Internacional. Uma explicação possível para a denunciada passividade do governo chaquenho aparece em outro telegrama do Wikileaks publicado por este jornal na semana passada, que dá conta da visita do então presidente da Monsanto Argentina, Juan Ferreyra, à Embaixada norte-americana em agosto de 2008.
“Ferreyra disse que a Monsanto estava tendo boas conversações com produtores de algodão para expandir o uso do bt cotton (algodão transgênico) na província do Chaco, no norte argentino, e cooperar ali”, diz o telegrama. “No dia 12 de agosto, a Monsanto assinou um acordo de cooperação com o governador do Chaco. O embaixador pôde apoiar esta iniciativa com uma nota na página editorial do principal jornal do Chaco e com conversações com o governador nesse mesmo dia. O governador Capitanich se mostrou muito entusiasmado em trabalhar com a Monsanto para melhorar e expandir a produção local de algodão”.
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Link para a reportagem original do Página 12: http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-163729-2011-03-09.html
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