Câncer, leucemia, malformações fetais, abortos espontâneos, problemas respiratórios, oculares e dermatológicos: é interminável a lista de doenças das quais os habitantes de San Jorge se dizem vítimas.
A 600 quilômetros de Buenos Aires, com seus 25 mil habitantes, San Jorge é um agradável vilarejo de Santa Fe, uma das mais ricas províncias agrícolas da Argentina. No bairro pobre de Urquiza, somente uma rua de terra separa a casa de Viviana Peralta dos campos de soja onde a pulverização de pesticidas se faz por avião. Foi somente quando ela percebeu que Ailen, sua filha de um ano e meio, estava tendo crises agudas de asma cada vez que o avião sobrevoava sua casa, que a sra. Peralta fez a associação. No hospital, uma pediatra confirmou a presença de glifosato no sangue de Ailen.
A reportagem é de Christine Legrand, publicada pelo Le Monde e reproduzida pelo Portal Uol, 09/08/2011 (Via IHU Unisinos).
O glifosato é o princípio ativo do Roundup, o herbicida elaborado e comercializado pela empresa americana Monsanto, cujo uso se popularizou a partir de 1997 na Argentina, pioneira na América do Sul. Em contato com o herbicida, todas as ervas daninhas morrem, exceto pela soja RR (Roundup Ready), a soja transgênica tolerante ao Roundup criada pela Monsanto.
Em San Jorge, a incidência de câncer aumentou 30% em dez anos. Depois de uma pulverização, os habitantes contam que seus lábios ficaram arroxeados e suas línguas incharam. Frangos morreram. Gatos e cachorros perderam o pelo. Abelhas desapareceram e os pássaros foram rareando.
Depois de ter sido dispensada pelo prefeito, Viviana Peralta resolveu apelar para o tribunal. Um juiz a ouviu. Ele aceitou receber sua queixa, bem como a de 23 famílias do bairro, contra o governo argentino, as autoridades provinciais e os produtores de soja.
No dia 17 de março de 2009, a Justiça deu um veredito histórico ao proibir qualquer pulverização a menos de 800 metros das casas caso ela seja feita com a ajuda de “mosquitos”, os tratores que empregam asas com vários metros de extensão, e a menos de 1,5 quilômetro se feita por avião.
“O glifosato não é água benta, como quiseram fazer a gente acreditar!”, se revolta Carlos Manessi, agrônomo e coordenador para a província de Santa Fe da campanha nacional contra as pulverizações. Ele ressalta que a comercialização do Roundup foi autorizada na Argentina sem análise científica prévia do governo, e “somente a partir de um relatório da Monsanto em inglês, nunca traduzido.”
Os produtores locais de soja estão convencidos de que o Roundup é inofensivo. “Proibi-lo seria como proibir a aspirina”, diz um deles. A febre do “ouro verde” tomou conta da maior parte das províncias argentinas, incentivada pela demanda dos países emergentes e da disparada nos preços no mercado mundial. A Argentina é a terceira maior produtora de soja, e a primeira exportadora de produtos derivados (óleo e farinha). A soja RR ocupa mais da metade das terras cultivadas, ou seja, 17 milhões de hectares.
Terras queimadas
No frio do inverno austral, de cada lado da estrada nacional 10 que liga Santa Fe a Córdoba, outra rica província agrícola, se estendem a perder de vista terras acinzentadas, queimadas pelo Roundup antes da época das sementes. As vacas, habitantes tradicionais dos pampas, foram confinadas. Qualquer pedaço de terra, até na beira da estrada, é reservado para a soja. “Todos aqueles que falam dos perigos do glifosato são tratados como loucos, são acusados de serem contra a prosperidade do país”, se indigna Viviana Peralta. Ofereceram-lhe dinheiro para que ela se mudasse. Apesar das ameaças, um movimento de resistência surgiu em diversas províncias.
Em Córdoba, a associação das Mães do Bairro de Ituzaingo denuncia mais de 200 casos de câncer entre 5 mil habitantes. Nas ruas, as mulheres usam lenço na cabeça, e as crianças, uma máscara no rosto. Tratadas como “loucas”, as Mães conseguiram, em 2009, que um juiz proibisse a pulverização por avião a menos de 1,5 quilômetro das habitações. Mas nem sempre essas proibições são respeitadas. E o Roundup pode permanecer por muito tempo em suspensão na atmosfera, e viajar por vários quilômetros, levado pelo vento e pela água.
Muitas autoridades provinciais e parlamentares são eles próprios produtores de soja, ou investiram na produção de sementes. A maioria dos engenheiros agrônomos trabalha para fabricantes de pesticidas. Em compensação, há cada vez mais médicos rurais que falam sobre o “pesadelo sanitário”: “Ele afeta 12 milhões de pessoas na Argentina”, afirma Medardo Avila Vázquez, coordenador do movimento dos Médicos dos Povos Vítimas da Pulverização.
Na província do Chaco, na fronteira com o Paraguai, no município de La Leonesa, um estudo revelou que ao longo dos dez últimos anos a incidência de câncer triplicou, e o das malformações quadruplicou. Há uma batalha jurídica entre os habitantes e os produtores de arroz, a principal riqueza da região, que utilizam glifosato e praticam a aspersão por avião. A população pede por uma distância razoável entre as casas, as escolas, os cursos d’água e os arrozais. Mas também por um controle oficial da saúde dos habitantes e do meio ambiente.
O embriologista Andrés Carrasco, da Universidade de Buenos Aires, publicou, no final de 2010, um estudo mostrando o efeito tóxico do glifosato sobre embriões de anfíbios. Esse trabalho lhe valeu persistentes antipatias. Ele foi agredido quando esteve em La Leonesa, e a palestra que ele deveria dar no Salão do Livro foi cancelada. “Não descobri nada de novo. Só confirmei aquilo que outros cientistas haviam descoberto”, ele explica. “Existem provas científicas e, sobretudo, centenas pessoas que são a prova viva dessa urgente questão sanitária”.
O pesquisador lembra que na França e nos Estados Unidos, a Monsanto foi condenada por publicidade enganosa depois de apresentar seu herbicida como “100% biodegradável”. Na Argentina, utiliza-se cada vez mais o Roundup, pois as ervas daninhas estão desenvolvendo resistência. Em 1991, o país consumia um milhão de litros de glifosato, e passou para 200 milhões de litros em 2009.