O Globo/Razão Social, 08/10/2011
Entrevista com Renato Maluf
por Amelia Gonzalez
O telefone toca durante a entrevista e Renato Maluf dialoga em inglês com a pessoa que está do outro lado da linha. Quando desliga, comenta: “Era alguém de uma rede social querendo fazer contato conosco. O Brasil hoje tem um papel importante no cenário internacional em todas as dimensões envolvidas com a segurança alimentar”. Presidente do Conselho de Segurança Alimentar, um órgão criado pelo sociólogo Betinho nos anos 90 e recuperado pelo ex-presidente Lula em 2003, que reúne sociedade civil e representantes do governo, Maluf trabalha numa salinha entulhada de livros e ultimamente anda mais assoberbado do que o habitual. Está à frente da organização da quarta Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que acontecerá mês que vem em Salvador e que, este ano, terá uma relevância ainda maior. É que na abertura do evento a presidente Dilma Roussef assinará o Primeiro Plano Nacional de Segurança Alimentar. Basicamente, o plano tem dez desafios, que se juntam ao enorme desafio mundial de garantir alimento para uma população que já alcançou sete bilhões de pessoas no mês passado, segundo a ONU.
O GLOBO:Para alimentar as 7 bilhões de pessoas no mundo é preciso usar agrotóxico?
RENATO MALUF: Não. É preciso deixar bem claro duas coisas: eu não estou negando a contribuição que a ciência deu para conseguirmos aumentar a produtividade da agricultura, mas a ciência não é neutra, depende de quem a usa. Ignorar que a chamada revolução verde, dos anos 50 e 60, fez com que o mundo adquirisse uma capacidade de produção é estupidez. Agora, esconder que isso foi feito à custa de uma depredação do meio ambiente jamais vista é maldade.
O GLOBO:Então precisamos de uma nova revolução verde ?
RENATO MALUF: Esta é a resposta que está sendo dada internacionalmente: precisamos de uma nova revolução verde e que agora seja duplamente verde, sem o tal do agrotóxico. Primeiro porque o pacote sem agrotóxico está difícil porque a monocultura aumenta a incidência de praga. Os grandes agricultores estão começando a reagir, isso é uma sensação que eu tenho. O povo está acordando para isso.
O GLOBO: Qual o maior desafio da fome, que hoje atinge 1 bilhão de pessoas no mundo segundo a Food and Agriculture Organization?
RENATO MALUF: Está bastante claro nos diagnósticos que o problema da fome no mundo não é um problema de falta de produção, é um problema de acesso. O mundo é capaz de produzir, depende do modelo no qual se está baseando. Mas, se tivermos ideia de alimentar as 7 bilhões de pessoas aumentando o modelo atual, aí é que o planeta não dá conta. Porque é um modelo que superexplora o recurso natural, tem um elevado nível de desperdício, alimentação de má qualidade, uso absurdo de agrotóxico.
O GLOBO: Qual seria o modelo ideal?
RENATO MALUF: Vai ficando cada vez mais evidente que os modelos baseados na agricultura familiar dão conta, desde que se inicie um processo de reversão das grandes tendências, do circuito longo, das grandes corporações.
O GLOBO: Como escapar do circuito longo?
RENATO MALUF: O sistema alimentar mundial afastou a produção do consumo. Produção especializada, monocultura, só faz sentido se ingressar em redes locais, não levar esses produtos para outra extremidade do país ou do mundo. O circuito local é o inverso: é usar a produção de pequeno porte diversificada e promover uma circulação regional. Essa concepção de abastecimento alimentar descentralizada é fundamental, com base em circuitos curtos. Está formulada no Plano de Segurança Alimentar que a presidente Dilma assinará na abertura da Conferência.
O GLOBO: Isso quer dizer que o Brasil está fazendo o dever de casa direito ?
RENATO MALUF: Temos um papel crescente no mundo a partir do governo Lula. Mas ao mesmo tempo somos um grande exportador, então temos uma participação mais comercial. Ou seja: colocamos o assunto na prioridade da agenda, levamos para as discussões internacionais, somos reconhecidos por organismos internacionais. E na condição de grande exportador, reproduzimos algumas das mazelas que o sistema alimentar mundial tem.
O GLOBO: Quais são essas mazelas?
RENATO MALUF: Uma parte de sua produção exportada baseada na monocultura, com elevada quantidade de agrotóxicos (somos o maior consumidor de agrotóxicos da América Latina); um elevado nível de mecanização; comprometimento de biodiversidade; concentração fundiária, que é uma das causas da desigualdade social no Brasil. E temos aqui as grandes corporações internacionais e nacionais que são uma expressão do modelo de consumo de alimentos que está nos levando – e ao mundo todo – a uma condição de graves problemas de saúde associada à alimentação.
O GLOBO: Sobretudo por conta do agrotóxico?
RENATO MALUF: Sim, mas também pelo padrão alimentar que tem nos elevado a obesidade e sobrepeso em indicadores alarmantes. Já são alarmantes na América do Norte, em alguns países europeus, e na América Latina o México é campeão, mas estamos caminhando rapidamente para ganharmos este lugar.
O GLOBO: O que diz o Plano Nacional de Segurança Alimentar que a presidente Dilma vai assinar?
RENATO MALUF: O plano é resultado de um decreto assinado em agosto do ano passado pelo presidente Lula determinando que fosse formulado em 12 meses. O governo Dilma cumpriu o prazo. Eu destacaria basicamente os dez desafios iniciais do plano, entre eles: do direito, do hábito de se alimentar, da saúde, para as comunidades específicas. O que o plano faz é propor um conjunto de instrumentos para enfrentar esses dez desafios. Mas é um plano que prevê ações intersetoriais para enfrentar o desafio.
O GLOBO:Como assim ?
RENATO MALUF: Por exemplo: por sugestão do Consea o governo criou um programa de aquisição de alimentos que une a necessidade de alimento dos mais pobres com a necessidade de mercado da agricultura familiar. Ele compra produtos alimentares da agricultura familiar e transfere para os programas que dão alimentos ou que promovem acesso à alimentação dos mais pobres. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) recém aprovou uma lei para a qual o Consea foi chamado a ajudar a fazer, determinando que 30% da alimentação escolar sejam comprados localmente da agricultura familiar. Isso é circuito curto, um instrumento poderoso para enfrentar os desafios da segurança alimentar.
O GLOBO: Esses desafios são os mesmos do tempo em que Betinho criou o Consea ou são novos desafios?
RENATO MALUF: Uns são mantidos, outros se atualizam. Uma das características mais antigas do Brasil é ser um grande produtor agrícola com base na grande propriedade. Isso vem dos tempos do Brasil colônia. Transformou-se no agronegócio, nos ruralistas, enfim, pode-se ter uma atualização de nomes, mas a grande propriedade fundiária na base da nossa desigualdade social e dos problemas ambientais é tão antigo quanto o país.
O GLOBO: As mudanças climáticas vão afetar a segurança alimentar?
RENATO MALUF: O que eu falo é de variabilidade climática e eventos climáticos extremos, o que é mais próximo e menos incerto. Há muita especulação, mas o que se sabe é que o desenho da produção vai mudar, o que cria riscos e oportunidades.