Carta Capital | 01/09/2009
Eric Nepomuceno, de Buenos Aires
Há 35 anos a multinacional Monsanto começou a testar um herbicida à base de um componente químico chamado glifosato. Na década de 80, chegou à formula final do Roundup, que a partir dos anos 90 passou a ser utilizado em várias partes do mundo em pequena ou média escala (no Brasil, nos campos cobertos pelo agronegócio).
Mas é na Argentina, onde seu uso foi autorizado em 1996, que o glifosato é usado em larguíssima escala: por ano, 280 milhões de litros são fumigados ou aspergidos nas gigantescas plantações de soja transgênica que cobrem 18 milhões de hectares e não param de crescer. Aliás, 99% da soja argentina é transgênica, originada a partir de sementes geneticamente modificadas pela própria Monsanto. Ou seja: a multinacional criou uma semente que resiste ao mais violento herbicida que ela mesma produz. Ervas, insetos, anfíbios, aves e animais sofrem efeitos letais. O produto contamina a terra e as águas. Agora, o pesquisador argentino Andrés Carrasco denuncia que o glifosato pode ser letal ao ser humano.
Desde 2002 uma série de estudos realizados de forma isolada por médicos e cientistas em laboratórios de diversos centros acadêmicos vem alertando para os riscos do glifosato. A primeira denúncia consistente surgiu na Universidade de Carleton, da província de Ontário, no Canadá. Em 2005, as denúncias ganharam força a partir de estudos realizados por Gilles-Eric Seralini, especialista em biologia molecular da Universidade de Caen, na França.
Em abril de 2009, Andrés Carrasco, diretor do Laboratório de Embriologia Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires e um dos maiores especialistas latino-americanos em desenvolvimento embrionário, deu a estocada final. Seus estudos confirmam que o glifosato pode causar efeitos devastadores no organismo humano, provocando má-formação genética, deformação em embriões, alterações nas células.
O ser humano, em contato com o glifosato, sofre consequências como abortos espontâneos, gera crianças com deformações que vão de acefalia e lábio leporino a mutilações de membros. Os que têm contato direto com o produto são mais expostos a diversos tipos de câncer, principalmente linfoma e leucemia.
Na localidade cordobesa de Malabrigo, cercada por imensas plantações de soja, em 250 partos registrados em um ano foram observados treze casos de má-formação. Em outras cidades e vilarejos encravados em regiões de intenso plantio de soja – e, portanto, de uso do glifosato –, foi registrado um aumento surpreendente de casos de abortos aembrionários, ou seja, formou-se a placenta, mas não o embrião.
O passo adiante dado pelo especialista argentino foi confirmar, em pesquisas de laboratório que utilizaram o glifosato até 1,5 mil vezes mais diluído do que o aplicado nas plantações de soja, a existência de fortes deformações em embriões – com as mesmas consequências observadas sobre populações das áreas fumigadas ou aspergidas com o herbicida.
Nascido em 1946, Andrés Carrasco tem um currículo invejável, que inclui passagens, como pesquisador, por importantes centros da Suíça, da Alemanha e dos Estados Unidos. Nos últimos quinze anos, acumulou pelo menos dezesseis bolsas de pesquisa fornecidas por organismos como a Unesco, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Fundação Guggenheim. Há 28 anos se dedica a pesquisas embrionárias, o que confere peso específico às denúncias contra o produto agroquímico mais utilizado em seu país, o maior plantador de soja transgênica do mundo.
Além da Monsanto, os grandes defensores do agronegócio e o próprio governo, que impulsiona o atual modelo agropecuário na Argentina, se esforçam para desacreditar as denúncias. Seu principal argumento é o tempo de uso do glifosato – 35 anos –, que seria um atestado de “segurança sanitária”.
Andrés Carrasco, contudo, reforçou as denúncias e foi mais fundo: deixou claro que, ao amparo do silêncio do governo, seu país se transformou no mais extenso campo de experimentação biotecnológica do planeta.
Segundo o médico argentino, já há resultados alarmantes que confirmam, de maneira cabal, os malefícios do herbicida. Como a soja se espalhou feito praga pelos campos argentinos, o que sua pesquisa aponta é que – além das drásticas mudanças na estrutura agrária do país, graças à substituição veloz e descontrolada dos cultivos e criações tradicionais por soja transgênica, com as consequentes alterações que vão de hábitos culturais ao emprego de mão de obra nas lavouras e campos – o uso indiscriminado do glifosato é uma ameaça concreta à vida humana.
Com três colheitas por ano e o preço sempre em alta da soja no mercado internacional, algumas projeções indicam que em três anos a Argentina estará importando carne e trigo, tradicionais produtos de exportação no país.
Ainda que se reconheça, adverte ele, que a criação do primeiro pacote biotecnológico (criar o herbicida e a semente que resiste à sua aplicação) possa ser considerada revolucionária, é urgente denunciar seus efeitos sobre o homem.
A Monsanto, por sinal, tem experiência em criar herbicidas que destroem plantações e vidas humanas. Afinal, foi ela que desenvolveu o “agente laranja” utilizado para desfolhar florestas durante a Guerra do Vietnã, e que provocou centenas de vítimas nas próprias tropas dos Estados Unidos, além de ter dizimado milhares de vietnamitas.
Carrasco diz que a rapidez com que em 1996 o governo de Carlos Menem aprovou, através de seu secretário de Agricultura, Felipe Solá, o uso tanto da semente transgênica como do herbicida letal no país demonstra o poder da Monsanto. Solá se baseou num relatório de 136 páginas, das quais 108 estavam em inglês – produzidas pela própria Monsanto. Nem sequer se deu o trabalho de mandar traduzir.
Desde que lançou as suas denúncias, Carrasco passou a ser objeto de uma intensa campanha. É acusado de ter divulgado resultados sem passar pelo crivo de alguma publicação científica. O médico, que, aliás, tem importante bibliografia nessas publicações, contra-argumenta: não queria que sua denúncia ficasse restrita ao âmbito acadêmico. Lembra que há estudos anteriores, até mais importantes do que o seu, indicando exatamente o mesmo resultado que ele apenas tratou de aprofundar. E desafia qualquer um a desmentir o que afirma.
Carrasco vem sofrendo pressões dos barões do agronegócio em seu país e do próprio ministro da Ciência e Tecnologia, Lino Barañao, que, no passado, teve ligações com a Monsanto. Discreta, a multinacional da semente e do veneno prefere ficar em silêncio. Sabe que tem quem brigue por ela.