O que significa essa queda sem resistência? A experiência paraguaia interessa a todos os sul-americanos. Mais vale pensar nela e preparar-se do que se deixar surpreender.
A queda de um presidente, por Daniel Aarão Reis
O Globo, 17/07/2012
Na sexta-feira, 22 de junho passado, foi deposto o presidente do Paraguai, Fernando Lugo. Um processo-relâmpago: a Câmara dos Deputados aprovou o impeachment por 73 votos a 1. Menos de 24 horas depois, o Senado, por 39 votos a 4, confirmou o veredito. Em quase 32 horas, um presidente eleito de menos na América do Sul.
Um processo legal? Ou uma nova modalidade de golpe de Estado?
Os que depuseram o presidente alegam que respeitaram a Lei e a Constituição. No mesmo sentido foi a decisão da Suprema Corte, confirmando a decisão do Parlamento.
Uma avaliação sujeita a controvérsias.
Luis Lezcano Claude, ex-ministro da Corte Suprema, apontou o caráter vago e a incongruência das cinco acusações formuladas contra Lugo: um ato politico realizado num quartel do exército, configurando instrumentalização das forças armadas; a assinatura de um protocolo internacional (Ushuaia II) que atentaria contra a soberania do país; invasões de terras; crescente insegurança social; um choque armado em Curuguaty, onde perderam a vida dezessete pessoas, entre policiais e camponeses, em torno de uma questão de terras.
As duas primeiras acusações primam pela inconsistência: o ato diplomático sequer entrara em vigor, pois dependente de aprovação do próprio Parlamento; a reunião política em recinto das forças armadas ocorrera em 2009 e não se repetira.
Restou a questão maior da reforma agrária que, embora não referida explicitamente, tem suscitado, de fato, inquietação e lutas sociais. Não à-toa, nas razões finais formuladas pelo Senado, o presidente foi formalmente acusado de “complacência com a agitação agrária” e de “fomentar a luta de classes”. Em nenhum momento, porém, evidências factuais foram trazidas à consideração.
Outra questão essencial teria sido igualmente desconsiderada: o direito de defesa. Assegurado nas leis e na Constituição, foi atropelado pelo Parlamento. Sempre segundo Lezcano Claude, o prazo para preparar as alegações e apresentá-las oralmente — trinta minutos — foi “ínfimo ao ponto de determinar a irrelevância desta etapa”.
Também de nada valeram as pressões diplomáticas que tentaram deter o processo invocando a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no referente ao direito de defesa, e em especial a existência da Cláusula de Compromisso com a Democracia, constante nos protocolos assinados no âmbito do Mercosul, e reafirmados pelo tratado que constituiu a União das Nações Sul-Americanas/Unasul. Foi tudo em vão.
Assim como o argumento — jocoso — de que um motorista flagrado pela polícia de trânsito do Paraguai tem cinco dias para se defender. Quase cinco vezes mais do que todo o processo que resultou na deposição do presidente.
Assim, o que houve no Paraguai foi uma espécie de “golpe branco”, desferido através do Parlamento, sob a cobertura — inconsistente e farisaica — de normas legais que, de fato e de direito, foram desrespeitadas. Como observou a historiadora argentina Liliana Brezzo, mais que uma ação arbitrária contra um presidente, um golpe — mais um. E quem o sofreu, mais que um presidente, foi a história do Paraguai.
A questão é saber: apenas a história do Paraguai?
Há, evidentemente, aspectos singulares, e, portanto, irrepetíveis em outras latitudes. Mas não é preciso uma lente de aumento para perceber o contexto histórico em que se inseriu este golpe recente.
Desde o início do século, já houve outras tentativas: Venezuela (2002), Bolívia (2008), Honduras (2009), Equador (2010), envolvendo em doses diferentes violência, arbitrariedade e “recursos legais”.
Em todos estes episódios, evidenciou-se a presença de forças conservadoras que se recusam a conviver com a democratização das instituições e com a atenuação das desigualdades sociais. Conservam posições decisivas na economia, nas forças armadas, na polícia, nos parlamentos, na grande mídia, nos tribunais, nas universidades e nas alturas da administração pública. Opõem-se a reformas e para isto mostram-se dispostas a recorrer a golpes — legais ou ilegais, democráticos ou não. Tais forças já demonstram seu “cansaço” com a democracia atualmente existente, o que dirá de seu aperfeiçoamento e aprofundamento. Infelizmente, elas não existem apenas no Paraguai.
No plano internacional, o alinhamento decorrente do golpe que depôs Lugo foi expressivo. Contra os golpistas, os países do Mercosul e que lideram a União das Nações Sul-Americanas, a Unasul. Com os golpistas, os governos dos Estados Unidos, da Espanha, da Alemanha e do Vaticano, tentando criar, através do Paraguai, uma brecha.
Ora, a democracia e as reformas sociais em terras da América do Sul têm como condição indispensável a união política e econômica das nações do subcontinente. É tão claro que chega a ofuscar.
E ainda, e não menos importante: a queda acovardada de Lugo suscita a lembrança — traumática — de derrotas e, pior, de derrotas sem luta. O compromisso com a democracia exige mais do que o respeito à Lei. Implica a decisão de resistir às tentativas golpistas.
Por tudo isto a experiência paraguaia não é só dos paraguaios. Interessa a todos os sul-americanos. Mais vale pensar nela e preparar-se do que se deixar surpreender.
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Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense.