JC e-mail 4597, de 04 de Outubro de 2012
Daniel Ferreira Holderbaum é engenheiro agrônomo e mestre em Recursos Genéticos Vegetais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Artigo enviado ao JC Email pelo autor.
Sobre a controvérsia da biossegurança de organismos geneticamente modificados e o recente caso do estudo de ratos alimentados com milho transgênico tolerante a herbicida.
Posições ideológicas podem influenciar a compreensão a respeito de informações científicas sobre as mais diversas áreas do conhecimento. E isto é válido para ambos os “lados” de debates altamente polarizados, como o da biossegurança de organismos geneticamente modificados (OGMs). Segundo Lacey (1), os valores científicos de neutralidade e, especialmente autonomia, estão seriamente comprometidos atualmente, mantendo-se somente a imparcialidade de modo concreto. Ainda mais quando se trata de opiniões, é impossível se falar em neutralidade e ausência de viés ideológico, já que na medida em que interesses se tornam presentes, a neutralidade tende a se esvair.
No que se refere ao debate sobre a tecnologia do DNA recombinante ou seus produtos, pessoas inevitavelmente têm diferentes perspectivas, o que influencia o modo como ideias são organizadas e opiniões emitidas; e interesses pessoais, os mais diversos, também pesam no modo de agir e se expressar, quer seja admitido ou não.
Segundo Andrioli, “… vem crescendo o número de adeptos de um apoio incondicional à transgenia como portadora natural do progresso para a agricultura, e do repúdio a assim chamada “ideologização” do debate por parte dos críticos desta tecnologia. A atitude é autoritária, pois não suporta a possibilidade do pensamento diferente ou contraditório sobre o tema.” (2).
A legitimidade da rápida introdução da agricultura transgênica intensiva depende de duas condições: a de que os transgênicos são necessários para alimentar o mundo e que não ocasionam riscos significativos para a saúde ou o ambiente (3). Apesar dos transgênicos serem produto da pesquisa científica, não é a pesquisa científica que nos diz que eles são necessários para alimentar a população mundial; isto é uma suposição sem base empírica, baseada na lógica neoliberal da economia global (3). Interesses científicos deveriam se ocupar em responder de maneiras sistemáticas e empíricas se as condições para a legitimidade dos transgênicos se sustentam de fato. Isto é especialmente importante em países como o Brasil, onde a riqueza da biodiversidade é o maior trunfo disponível à produção agrícola (4).
Questões relativas à gama de formas viáveis de agricultura, e qual dentre elas pode produzir de modo que todas as pessoas tenham acesso a uma dieta balanceada, dentro de um contexto que incremente o bem estar local, mantenha a biodiversidade, sustente o ambiente, e apoie a justiça social, permanecem em aberto, e enquanto permanecerem em aberto, a questão da legitimidade dos transgênicos não está de modo algum resolvida (3).
O estrondo midiático e a controvérsia trazida à tona pelo estudo que relata efeitos adversos de um milho transgênico tolerante a herbicida (e do herbicida em si) em roedores (5), publicado on-line recentemente no periódico Food and Chemical Toxicology, pelo grupo de pesquisa liderado pelo Professor Gilles-Eric Séralini, exemplificam e tornam clara a importância deste debate na sociedade.
Comumente os proponentes dos transgênicos e parte da comunidade científica afirmam que não existe nenhum estudo sério que evidencie riscos ou danos de OGMs para o ambiente e para a saúde humana e animal, ao passo em que existem centenas de estudos de qualidade completamente idôneos, que atestam o histórico de uso seguro de OGMs em cultivos agrícolas e alimentos derivados. Isto é uma grande falácia, e releva completamente o corpo de evidências científicas que está sendo gradualmente construído e tornado disponível na literatura sobre o assunto.
Apesar da recente introdução dos cultivos geneticamente modificados (GM) (menos de 20 anos), em uma ampla e recente revisão da literatura sobre avaliações de risco de OGMs (6), os autores afirmaram que pela primeira vez foi observado um equilíbrio no número de estudos sugerindo que diversas variedades de plantas transgênicas (principalmente milho e soja) são tão seguras e nutritivas quanto suas respectivas contrapartes convencionais não-GM, e estudos manifestando preocupações sérias. Além disso, os mesmos autores mencionaram que a maioria dos estudos demonstrando que alimentos GM são tão seguros e nutritivos quanto os obtidos pelo melhoramento convencional, foram realizados por companhias de biotecnologia ou associados, que são os mesmos responsáveis pela comercialização destas plantas GM.
Pode-se ver que existem preocupações compreensíveis quanto ao modo como grande parte das pesquisas em transgenia é conduzida, dirigida principalmente por investimentos e incentivos privados, que não necessariamente têm em conta os interesses públicos e ambientais de modo sistemático e transparente (7,8). Além disso, existem dúvidas quanto à verdadeira relação custo-benefício de inovações transgênicas, incluindo custos com regulação e monitoramento (7,8), assim como incertezas quanto aos possíveis riscos ambientais e para a saúde humana e animal, e os reais efeitos sociais e econômicos dos cultivos transgênicos (9).
Alguns dos argumentos que mais têm sido levantados para desqualificar o recente estudo publicado no periódico Food and Chemical Toxicology, são claramente infundados. Um dos mais recorrentes, “os autores utilizaram uma linhagem de ratos propensa ao desenvolvimento de tumores, e isto invalida os resultados”, deixa completamente de lado o importante fato de que organismos sensíveis são necessários e recomendados para a detecção de efeitos em toxicologia, e em caso de ausência de efeitos diferenciais, a incidência de tumores nesta linhagem de ratos, ou em qualquer outra, mais ou menos suscetível, deveria ser igual em grupos controle e tratados. Além disso, a mesma linhagem foi utilizada em estudo publicado pela Monsanto para atestar a segurança do milho NK603 (10).
Então, por que esta linhagem de ratos foi considerada adequada por membros das agências regulatórias para considerar um OGM seguro, mas é taxada como inadequada para demonstrar riscos relacionados ao mesmo OGM? Portanto, do ponto de vista científico o artigo não só tem mérito e consistência acadêmica, como também permite questionar a segurança deste OGM e exigir estudos de longo prazo aos proponentes da tecnologia (relativamente à expectativa de vida de animais-teste), e, baseado no Princípio da Precaução, justifica uma atitude das agencias regulatórias no sentido de proteger a saúde da população.
Outro ponto levantado sobre o artigo de Séralini e colaboradores diz respeito à falta de uma relação dose-dependente para os resultados obtidos no estudo. Entretanto, conforme consta no próprio artigo, quando curvas de dose-resposta não-monotônicas ocorrem em testes com disruptores endócrinos, como é o caso do Roundup (11), os efeitos de doses baixas não podem ser preditos pelos efeitos observados em doses altas (12). Além disso, a avaliação de OGMs através de bioensaios deve levar em conta que uma planta, órgão ou tecido vegetal é quimicamente muito mais complexo do que uma substancia química isolada, o que repercute em maior complexidade de efeitos.
Diversas outras críticas têm sido feitas à metodologia estatística reportada no estudo. Séralini e colaboradores de fato não apresentaram no artigo uma análise estatística para os dados de mortalidade e incidência de tumores, e, portanto, não apresentaram testes de significância de efeitos entre os diferentes grupos; apenas desenharam um quadro descritivo destes resultados, sem fazer qualquer declaração de significância estatística para estas duas variáveis, o que não deixa de ser adequado quando se tem um tamanho amostral relativamente pequeno (mas não incomum em testes toxicológicos), já que amostras pequenas diminuem o poder estatístico (a capacidade de detectar diferenças, quando estas de fato existem), e não o contrário.
Adicionalmente, um importante achado relatado no artigo – as diferenças significativas encontradas para variáveis bioquímicas analisadas em fêmeas tratadas com milho GM ou milho convencional, respaldadas por análise estatística robusta, dão suporte adicional às conclusões do artigo, e têm sido negligenciadas nas críticas.
Em última instância, para corroborar ou refutar os resultados deste estudo, convém a repetição do experimento ou a realização de estudos similares. Desmerecer o estudo por completo e sem o devido escrutínio, desconsiderando a quantidade de informação de qualidade presente, baseado principalmente em argumentos contraditórios que têm por único objetivo desacreditar a pesquisa, é um tanto tendencioso.
Uma valiosa lição pode ser extraída deste episódio: ciência e ideologia se mesclam na sociedade, com altíssima freqüência; portanto, convém ter extremo cuidado com tentativas de se “diminuir” opiniões contrárias às nossas como fruto de tendências ideológicas, concomitantemente dando por certo que nossas próprias opiniões estejam livres de quaisquer ideologias; isto é geralmente falso, ainda mais dentro de um debate polêmico como este, e tais subterfúgios costumam ser utilizados por quem não tem uma base sólida de evidências empíricas por trás de seus argumentos.
“O conhecimento científico é sempre transitório e socialmente relativo… Mesmo que não haja uma relação lógica direta entre fato e valor, há uma relação sociológica entre ambos, pois o conhecimento de um fato conduz a posições morais e políticas e esses valores estarão presentes para o pesquisador, o tempo todo, durante o processo científico. Neste sentido, não existe ciência de um lado e ideologia de outro, mas diferentes pontos de vista científicos, vinculados a diferentes pontos de vista de classe.” (2).
Referências:
1. Lacey, H. The ways in which the sciences are and are not value free. Em Gardenfors, P.; Kijania-Placek, K. & Wolenski, J. (eds). In the scope of logic, methodolology and philosophy of science: Volume two of the 11th International Congress of Logic, Methodology and Philosophy of Science, Cracow, August 1999, pp. 513-526. Dordrecht: Kluwer, 2002.
2. Andrioli, A.I. O Científico e o Ideológico. Revista Espaço Acadêmico, n. 29. 2003.http://www.espacoacademico.com.br/029/29andrioli01.htm
3. Lacey, H. Seeds and the Knowledge They Embody. Peace Review, v. 12, n. 4, p. 563-569. 2000.
4. Guerra, M.P. et al. Agriculture, biodiversity and ‘appropriate technologies’ in Brazil. Ciência e Cultura, v. 50, p. 408-416. 1998.
5. Séralini et al. Long-term Toxicity of a Roundup Herbicide and a Roundup-Tolerant Genetically Modified Maize. Food and Chemical Toxicology. 19th September, 2012.in press.
6. Domingo, J.L. & Giné Bordonaba, J. A literature review on the safety assessment of genetically modified plants. Environment International, v. 37, p. 734-742. 2011.
http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0278691512005637
7. Herring, R.J. Stealth seeds, bioproperty, biosafety, biopolitics. Journal of Development Studies, v. 43, n. 1, p. 130-57. 2007.
8. Uphoff, N. Agroecological alternatives: capitalising on existing genetic potentials. Journal of Development Studies, v. 43, p. 218-236. 2007.
9. Pretty, J.N. The rapid emergence of genetic modification in world agriculture: contested risks and benefits. Environmental Conservation. v. 28, n. 3, p. 248-62. 2001.
10. Hammond, B. et al. Results of a 13 week safety assurance study with rats fed grain from glyphosate tolerant corn. Food and Chemical Toxicology, v. 42, p. 1003-1014. 2004.
11. Gasnier, C. et al. Glyphosate-based herbicides are toxic and endocrine disruptors in human cell lines. Toxicology, v. 262, p. 184-191. 2009.
12. Vandenberg, L.N. et al. Hormones and endocrine-disrupting chemicals: low-dose effects and nonmonotonic dose responses. Endocrine Reviews. 33, 378-455. 2012.
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