artigo de Marcelo Canellas
Diário de Santa Maria – RS, 19/02/2013
Todo ano a Comissão Pastoral da Terra divulga um balanço das mortes no campo. Em 2011, por exemplo, 29 pessoas foram assassinadas em conflitos agrários no Brasil. Em 2012, num levantamento ainda parcial, aparece o mesmo número: 29 mortes. A despeito dos avanços da modernidade, essa violência medieval não arrefece. A cada novo anúncio, a CPT aponta as mesmas causas de sempre: interesses econômicos contrariados, impunidade, tensão criada pela demora no julgamento de processos judiciais e ineficiência da política de reforma agrária do Estado.
É de se espantar que um país como o nosso não tenha superado a fase pré-capitalista de uma reforma agrária de verdade. Governo e sociedade são cúmplices de uma omissão secular com que têm de lidar agora e que se manifesta em efeitos trágicos e perversos. Como se vidas humanas não estivessem em jogo, perde-se de vista o caráter de urgência da distribuição de terra, crédito, assistência técnica e infraestrutura de produção a milhões de famílias dispostas a cultivar alimento limpo e saudável para, cinicamente – e a esta altura! – promover uma discussão conceitual sobre a necessidade ou não de fazer reforma agrária no Brasil. E que ninguém se engane: há muito de clichê e preconceito nesse debate. Os sem-terra ou são retratados como pobres coitados merecedores de ação social caritativa, ou são vistos como arruaceiros que só querem aporrinhar o agronegócio.
O assassinato de Cícero Guedes dos Santos, executado com 14 tiros, no dia 26 de janeiro, em Campos dos Goytacazes, no norte do estado do Rio de Janeiro, desmascara todos os que tentam fazer confusão de conceitos. Cícero era o anti-clichê. Inteligente e carismático, chamou a atenção da academia. Seu sítio Brava Gente, conquistado na luta pela terra, estava sempre repleto de estudantes universitários dispostos a aprender. A pequena unidade de produção era estudo de caso e objeto de pesquisa de cientistas de duas universidades, a UFF (Federal Fluminense) e Uenf (Estadual do Norte Fluminense) que viam em suas práticas agroecológicas a síntese do conhecimento ancestral acumulado pelos camponeses.
Inquieto e solidário, queria para os outros o que tinha para ele e sua família. Integrava comitês de erradicação do trabalho escravo, e ajudou a organizar a ocupação da usina Cambahyba, complexo de oito fazendas consideradas improdutivas pelo Incra desde 1998. Morreu aos 48 anos, deixando mulher, dois filhos e a certeza de uma dívida vergonhosa que temos com a família dele.