Insatisfeitos com as sementes híbridas distribuídas pelo governo, comunidades passaram a aderir a estas variedades locais, mais adequadas ao semiárido e que não precisam de agrotóxicos
Letícia Lins
CAMPO GRANDE (RN) E LAGOA NOVA (PB) – Proprietários de um pequeno sítio no vilarejo de Caiana, no interior do Rio Grande do Norte, João Fernandes Nogueira e a mulher, Rita Maria de Paula, reclamam das sementes de milho, envoltas em defensivos cor de rosa, que receberam de programas oficiais. Elas não brotaram e a família ficou sem colheita. Perto dali, na própria comunidade, Francisco Benedito de Paula, 37, compartilha da mesma queixa. O grão é “bonito”, afirma, mas “não nasceu”. Em local bem mais distante, no município de Queimadas, na Paraíba, a agricultora Maria do Carmo da Silva expressa decepção ainda maior: teve que devolver as sementes recebidas para abastecer os lavradores filiados à Associação de Desenvolvimento Rural do Sítio Guritiba, da qual é presidente. Os defensivos intoxicaram o seu neto de apenas um ano, que chegou a ficar hospitalizado por dois dias.
No Nordeste, onde mais de 1,5 milhão de famílias do semiárido vivem da agricultura familiar, situações como essas começaram a provocar uma rejeição à oferta de sementes híbridas padronizadas, que são misturadas geneticamente e precisam de agrotóxicos. Embora sejam distribuídas de graça aos agricultores do Agreste e do Sertão, muitos acreditam que elas colocam em risco o patrimônio genético da região, pois apenas uma variedade é entregue, ignorando o regime diferenciado de chuvas da região e a diversidade de solos. Nos últimos tempos, os agricultores encontraram em uma variedade local a alternativa para uma safra mais sustentável. Trata-se da semente crioula, ou “da paixão”, adequada ao semiárido e que vem sendo trabalhada e guardada desde gerações passadas.
— As crioulas têm mostrado que, talvez pela adaptação ao meio, produzem mais do que as oficiais ou comerciais. Não que estas não sejam boas. Mas exigem custos adicionais, como adubação, irrigação, defensivos, que terminam só dando lucratividade se plantadas em larga escala. Já as nativas chegam livres de agrotóxicos e não precisam de despesas com esses cuidados adicionais — afirma o agrônomo Emanoel Dias, da Assessoria e Serviços em Projetos de Agricultura Alternativa (AS-PTA), uma das parceiras da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), rede de organizações que atuam na gestão e no desenvolvimento de políticas para a região semiárida.
Utilizadas desde os tempos pré-coloniais pelos índios, as sementes crioulas chegaram aos dias atuais pela prática da agricultura tradicional, na qual os lavradores conservam-nas, selecionam, melhoram e as trocam entre si. Seu nome muda de acordo com o estado: são as sementes “da paixão” na Paraíba, “da fartura” no Piauí, “da resistência” em Alagoas, “da liberdade” em Sergipe, e “da gente” em Minas Gerais. Agora, as comunidades vêm se organizando para a criação de bancos de sementes crioulas, que podem ser familiares, comunitários ou regionais.
Segundo a ASA, já há mais de mil experiências coletivas, que envolvem quase 20 mil famílias. Só na região da Borborema, que congrega quinze municípios, os bancos comunitários somam 73, e há ainda outros três mil familiares. No estado, a “rede” já possui 225 bancos comunitários, com mais de oito mil famílias beneficiadas em 61 municípios.
Um dos bancos comunitários mais tradicionais é o do Sítio São Tomé, em Alagoa Nova, a 136 quilômetros de João Pessoa. O banco foi fundado em 1974 por José Oliveira Luna, o Zé Pequeno, indignado com a manipulação política. No sertão, a exemplo do que ocorria com a água, as sementes vinham se transformando em “moeda” eleitoreira.
— Tomei a iniciativa porque as sementes estavam fugindo do nosso meio, por causa do assistencialismo político. Fiquei revoltado com o que as autoridades faziam. Davam sementes em troca de voto — lembra Zé Pequeno, cujo banco tem hoje 61 “sócios” e preserva mais de 20 variedades tradicionais de milho e feijão, que são cultivadas na região.
Cada lavrador é obrigado a devolver 15 quilos de sementes crioulas para cada dez que receberam. Caso estas não vinguem, ele se obriga a devolver aquela quantidade em outra variedade.
Zé Pequeno defende que as sementes crioulas são cem por cento melhores do que as híbridas e que os sítios que as utilizam comemoram a fartura. As híbridas (não confundir com transgênicas, que são as geneticamente modificadas) resultam do cruzamento de variedades diferentes, seja na forma natural ou em laboratório. Mas estas vão perdendo a produtividade durante safras seguidas, o que obriga o lavrador a ter despesas a cada safra ou a depender da distribuição gratuita, feita pelos governos.
Em geral, são compradas em grandes quantidades e distribuídas de graça aos agricultores, quase sempre descapitalizados com as constantes secas que assolam a região. Como recebem em pequenas quantidades (até três quilos), eles precisam apelar para o comércio nos períodos de bom inverno, quando os preços são proibitivos para os padrões da Caatinga. Para os lavradores, as híbridas trazem três tipos de risco: a dependência da boa vontade das autoridades, a erosão do patrimônio genético da região, e a não garantia da segurança alimentar. Pior do que isso: só germinam bem na primeira geração.
— Na segunda, já não brotam como na primeira. E na terceira, nem nascem. Percebi que tinha virado escravo. Agora só planto semente crioula, porque produz melhor e a saúde é outra — afirma Carlos Soares Menezes, do Sítio São Carlos, localizado no município de Monte Alegre, em Sergipe.
A julgar por estudos realizados pela Embrapa Tabuleiros Costeiros, há vantagens no uso das crioulas. Foram testados sete campos de multiplicação em seis municípios diferentes, e realizados ensaios comparativos. Os testes foram efetuados entre 2010 e 2013, e analisado o desempenho de oito tipos de sementes, sendo seis crioulas, uma híbrida distribuída por órgãos oficiais e outra escolhida em casas comerciais. Ao todo, foram efetuados oito ensaios no período.
O estudo mostrou, por exemplo, que a variedade crioula jabatão de milho rendeu 2,5 toneladas de grãos por hectare, enquanto a comercial, conhecida por caatingueira (desenvolvida pela própria Embrapa), só produziu duas. Enquanto a primeira rendeu 11 toneladas de massa seca por hectare, a caatingueira só deu 8,5. A massa seca é importante no semiárido porque serve de forragem para o gado.
Por conta da importância das crioulas, a ASA incluiu o apoio e estímulo à criação de bancos de sementes no P1+2, Programa Uma Terra e Duas Águas. O P1+2 surgiu como desdobramento do P1MC, Programa Um Milhão de Cisternas, que visa implantar 1 milhão de cisternas para consumo doméstico no semiárido. O P1MC já implantou mais de 500 mil cisternas domésticas no semiárido, com o objetivo de garantir água potável para as famílias da área rural durante as secas.
Já o P1+2 visa um passo adiante: assegurar água para a agricultura e a segurança alimentar, inclusive com permanente de sementes crioulas. Até agora implantou 33.473 tecnologias como barragens subterrâneas, cisternas de enxurrada e tanques de pedra, entre outras.
Guardiões da paixão
Durante muito tempo marginalizadas pelos programas governamentais — pois eram consideradas grãos, usados para alimentação e não para o plantio — as crioulas passaram a ser reconhecidas como sementes a partir da Lei 10711/2003, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Sementes e Mudas. Essa lei impede que sejam feitas restrições à inclusão das crioulas em programas de financiamento ou em políticas públicas de aquisição, distribuição ou troca de sementes. Em pelo menos dois estados — Paraíba e Alagoas — há legislações locais incentivando a produção de sementes crioulas. Mas os agricultores reclamam que a maior parte da lei permanece no papel.
De acordo com o agrônomo Emanoel Dias, da AS-PTA, só no ano passado o governo da Paraíba investiu R$ 350 milhões na aquisição de sementes. Mas elas eram de uma só variedade e vinham de um mesmo fornecedor. Os sertanejos revindicam o direito de também fornecer as suas. E afirmam ser urgente a implantação não só de iniciativas estaduais, mas de um programa nacional de fortalecimento de bancos comunitários de sementes “que valorize o patrimônio genético produzido gratuitamente pelas famílias agricultoras”. Em carta divulgada durante o 3º Encontro de Agricultores Experimentadores em Campina Grande, em outubro do ano passado, eles ressaltaram o pesar por estarem “assistindo a distribuição de sementes por meio dos Programas Estadual e Federal no território da Borborema e em todo o estado da Paraíba”. Denunciaram que a distribuição de poucas variedades, não adaptadas às condições ambientais e socioculturais das diferentes regiões, “repete o erro histórico dos programas públicos que em nada contribuíram para promover a autonomia das famílias agricultoras”, prática que contribui “para a erosão genética da rica diversidade das sementes da paixão cultivada pelas famílias agricultoras”.
As coisas, no entanto, começam a mudar. Organizados em cooperativas, os produtores já conseguem vender suas crioulas para programas federais como o de Aquisição de Alimentos, o PAA, do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Eles exigem que o Programa Brasil Sem Miséria trabalhe prioritariamente com as crioulas e que o governo crie condições para que, num futuro não tão distante, opere exclusivamente com elas.
— Eu já tinha dito para o governo que não queria mais semente híbrida, mas mandaram para os 19 agricultores que se inscreveram no Garantia Safra, em Queimadas — conta Maria do Carmo Silva, que preside a associação de moradores da comunidade. — Foi no mês de junho. As sementes ficaram armazenadas em um galpão, junto da minha casa. Meu neto passou junto e ficou adoentado por causa do veneno. Agora virei guardiã e só trabalho com as crioulas. Lá no Sítio Guritiba fundamos um banco de sementes que já tem 32 sócios.
URL: http://glo.bo/1gEqduX
Notícia publicada em 14/01/14 – 7h00 Atualizada em 13/01/14 – 16h26 Impressa em 14/01/14 – 17h58