Globo Rural, 07/12/2014 08h45 – Atualizado em 07/12/2014 08h49
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Comunidades cultivam sementes crioulas no semiárido mineiro
Agricultores que produzem as sementes são chamados de guardiões.
Prática está sendo resgatada no Brasil e também em outros países.
Em vez de sementes industrializadas, sementes crioulas. É assim que são cultivadas muitas lavouras do semiárido de Minas Gerais. Uma prática que está sendo resgatada não só no Brasil, mas também em outros países.
Os agricultores que plantam sementes, que eles mesmos produziram, são conhecidos como guardiões de sementes. Na região mais seca de Minas, a mesa farta é um milagre que vem da terra.
“Quando a gente começou as pessoas chamavam até de doido. Roça de doido devido ao sistema que a gente plantava e de várias espécies de coisas”, o agricultor Geraldo Gomes Barbosa.
Muitos tipos de plantas, muitas sementes. Roça de doido ou costume milenar? Está na contramão de uma tendência internacional, em que os agricultores do mundo inteiro compram no comércio e cultivam um número cada vez menor de variedades de grãos. Mas na região, semente não é o mesmo que grão.
“Semente é uma coisa que vai produzir uma vida nova”, fala o agricultor Cristovino Ferreira Neto.
Na transição do cerrado para o semiárido de Minas Gerais
, entre os municípios de Grão Mogol e Serranópolis. É o território dos guardiões de sementes.
“O guardião é muito mais do que um produtor de sementes. Ele está preocupado em guardar a diversidade que existe”, explica Cristovino.
Eles saem em grupo e catam sementes de frutas nativas ou multiplicam espécies agrícolas como milho e feijão e guardam tudo a sete chaves, como se fosse um tesouro. Sementes crioulas é como são chamadas as variedades agrícolas que estão adaptadas ao solo e ao clima da região.
São dezenas de variedades diferentes de produtos armazenados em garrafas descartáveis ou em tambores. As sementes saem do local para as trocas em feiras da região ou então, para começar um novo ciclo nas lavouras.
“A gente tem variedades de feijão que a gente sabe q
ue são mais resistentes, mesmo com clima seco eles conseguem produzir”, fala Geraldo Gomes Barbosa.
Só de feijão, Geraldo produz 75 variedades diferentes. De milho são 18. Algumas muito raras e coloridas, como a de milho preto, e a de milho vermelho.
Isso tudo não é obra de uma só pessoa. É o resultado do trabalho do Geraldo, do pai do Geraldo, do pai do pai do Geraldo, do pai do pai do pai do Geraldo e de sabe-se lá quantas gerações de camponeses que se ocuparam em coletar, selecionar e guardar uma infinidade de sementes. Aos poucos eles foram acumulando um patrimônio genético fabuloso, que ainda pode servir muito à ciência brasileira.
Para a agrônoma da Embrapa Recursos Genéticos, Patrícia Bustamante, é como se os agricultores do norte de Minas guardassem para os cientistas um patrimônio genético que vai abastecer as pesquisas do futuro.
“Quando um pesquisador da Embrapa olha para a semente, olha o gene, o proteoma, a possibilidade de proteína que ele pode tirar dali e dos avanços que ele pode fazer. Nós guardamos menos sementes em um material estático, num tempo certo. Ele conserva mais sementes, na hora que ele precisa ele vai ter essas sementes, e de uma forma que ele pode circular entre os colegas, entre os amigos, camponeses, agricultores que moram na região”, fala Patrícia.
Os agricultores recebem assistência técnica da ONG Centro de Agricultura Alternativa. Segundo a agrônoma Ana Cristina Alvarenga, que faz parte da organização, os primeiros estudos mostram, inclusive, que sementes crioulas podem ser campeãs de produtividade.
“Não só a produtividade, mas a germinação, a pureza, a viabilidade, o teste de peneira. O que comprova que são muito próximas, que tem a mesma qualidade das sementes comerciais”, fala a agrônoma do CAA, Ana Cristina Alvarenga.
O trabalho dos guardiões de sementes está repovoando lavouras ancestrais, como a dos índios xakriabás, no cerrado mineiro, que tinham deixado de cultivar espécies tradicionais de milho e feijão, agora recuperadas.
A tradição é repassada aos mais jovens que nas salas de aula de aula das aldeias aprendem a importância de plantar as sementes crioulas. Junto com as sementes os agricultores recuperaram a confiança num valor universal.
“Quando a gente fala da semente crioula, tanto do milho quanto do feijão, é muito mais que semente plantada. É a memória do povo xakriabá, é o hábito alimentar que vai se recuperando”, diz a professora Célia Xakriabá.
Mas, para os guardiões, o fato de produzir e guardar sementes não garante o futuro da diversidade de alimentos. Isso só acontecerá com o apoio das cidades.
“Porque eu até costumo dizer que tem pessoas que nasceu e criou nas grandes cidades que eles pensam que as coisas brotam na prateleira do supermercado”, avisa o agricultor Cristovino.
“Acho que falta alimento em muitas regiões porque falta partilha. O guardião tem essa preocupação. Não olhar só a semente, mas olhar a vida em geral. Você está vendo que você está preservando a vida, guardando toda espécie de vida, e você está cuidando também”, diz o agricultor Geraldo Gomes Barbosa.
Existem outros núcleos de comunidades rurais, indígenas e quilombolas que também cultivam as sementes crioulas em várias regiões do Brasil.