Centro Sabiá, 04/01/2015
por Débora Britto
Conversamos com Gabriel Fernandes, assessor técnico da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia, sobre o atual contexto político brasileiro e os desafios que ele traz para o campo de valorização das sementes crioulas
Confira a entrevista:
Canto do Sabiá – Desde 2003, quando no primeiro governo Lula a CTNBio liberou a pesquisa e o cultivo de transgênicos no Brasil, há uma ameaça constante às sementes crioulas. Em 2012, período que enfrentamos uma grande seca no Semiárido brasileiro, a Monsanto instalou mais uma de suas unidades de pesquisa, que foi na cidade de Petrolina, berço do agronegócio irrigado do Nordeste. Diante desse cenário, quais são os principais desafios no campo da valorização das sementes crioulas neste segundo mandato da presidenta Dilma?
Gabriel Fernandes: Passados dez anos da liberação das sementes transgênicas no Brasil podemos dizer que essa tecnologia não cumpriu suas promessas. Pelo contrário, a expansão dessas lavouras tem feito crescer o uso de agrotóxicos uma vez que as pragas e as plantas espontâneas vêm desenvolvendo resistência. Agora, as empresas anunciam sementes transgênicas resistentes a “novos” venenos para combater esses problemas que elas mesmas causaram. Outra promessa é a criação de sementes geneticamente modificadas resistentes à seca. Mas o que sabemos é que quem está melhor conseguindo atravessar essa estiagem prolongada são aqueles agricultores que construíram suas cisternas para armazenar água da chuva, cultivam sementes crioulas em seus roçados e vêm diversificando a produção em seus quintais. Assim, temos o desafio de ampliar a circulação e o acesso das sementes crioulas pela agricultura familiar, documentar e divulgar a superioridade dessas variedades, sobretudo nesse contexto de seca, e negociar com os governos investimentos em programas e políticas de fomento à agrobiodiversidade.
CS – O atual Congresso Nacional está sendo considerado o mais conservador desde a redemocratização do Brasil, com um aumento significativo de parlamentares da bancada ruralista e empresarial, e para completar a presidenta Dilma Rousseff nomeou para ministra da Agricultura Kátia Abreu, que é a principal figura pública do agronegócio brasileiro. Como esse contexto negativo do novo Congresso e os novos nomes dos Ministérios, como o da Agricultura, poderá ser enfrentado?
GF: O governo até o momento não deu sinais concretos de estar disposto a contrariar os interesses da chamada base aliada e avançar numa agenda mais coerente com a dos setores que se mobilizaram nas últimas eleições. Isso significa que será necessária uma agenda permanente de mobilização por parte da sociedade civil para impedir retrocessos naquilo que já foi conquistado e para que possamos seguir avançando. O caso do PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] é um bom exemplo. Ele foi durante muitos anos uma das principais políticas que favoreceu a agroecologia justamente porque promovia processos organizativos nos locais. Agora, depois de reformulado em 2014, o programa ganhou uma sobrecarga burocrática e incorporou a lógica de uma ação protagonizada por órgãos estatais. De agentes ativos as organizações sociais passam a ser receptoras da política. Já a modalidade sementes do PAA pode estar na linha do “ganha mas não leva”, visto que o governo tem dado a entender que as organizações da agricultura familiar fornecerão sementes para programas oficiais, e não que o governo comprará sementes crioulas para fortalecer as ações locais de promoção da agrobiodiversidade. Outro exemplo é a introdução de cisternas de plástico nos programas de convivência com o semiárido, que rompe a lógica de fortalecimento dos processos organizativos locais.
CS – Qual a expectativa em relação à atuação do ministro Patrus Ananias no campo da agricultura familiar, com as sementes crioulas e a Agroecologia?
GF: Espera-se que o Ministério, inclusive por sua condição de coordenador da câmara interministerial da Pnapo [Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica], favoreça a articulação entre os diferentes órgãos de governo que participam da política e priorize sua implementação. Está previsto na política de agroecologia a criação de um programa nacional de sementes, que deverá tratar das variedades crioulas, das melhoradas de polinização aberta e das sementes orgânicas, sempre considerando também as hortaliças, forrageiras, adubos verdes e raças animais. O governo tende a pensar em ações de distribuição desses materiais, enquanto as entidades ligadas à ANA [Articulação Nacional de Agroecologia] entendem que esse programa deve fomentar a identificação, seleção, melhoramento, produção, troca, comercialização e livre uso dessas variedades de forma a fortalecer ações locais e regionais para a agrobiodiversidade. Uma ação importante prevista no Plano e que está sendo liderada pela Embrapa é a abertura de seus bancos de germoplasma para que as comunidades rurais possam ter acesso aos materiais genéticos ali armazenados. Também espera-se que o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário] atue decisivamente para colocar em prática outro componente fundamental da política de agroecologia que é o Programa Nacional de Redução do uso de Agrotóxicos – Pronara.
CS – O que os movimentos e organizações sociais, após apoio massivo na última fase da campanha de reeleição da presidenta Dilma, poderão priorizar neste mandato tendo em vista a formatação conflituosa dos ministérios do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura?
GF: Em primeiro lugar aparece sem dúvida a questão agrária. A concentração fundiária segue sendo ponto que estrangula a agricultura familiar em todas as regiões do país, sendo, portanto, fundamental, a retomada da discussão da reforma agrária e da atualização dos índices de produtividade. A manutenção e ampliação dos programas de convivência com o semiárido, e sua gestão pelas organizações sociais, é outro ponto de destaque. Da mesma forma aparece a Ater [Assistência Técnica e Extensão Rural] e Ates [Assistência Técnica em Assentamentos] e o rumo que será dado à Anater, a Agência Nacional de Ater, sobre a qual se tem até hoje pouquíssima informação. Entre outros pontos que poderiam ainda ser citados, vale destacar a política de agroecologia e o desafio de consolidar sua Comissão Nacional (CNAPO) como espaço privilegiado para debate com o governo e articulação com outros fóruns como o Consea, Condraf e a Comissão Nacional de Povos e Comunidade Tradicionais.
CS – Com mais de 10 anos da lei que regulamenta o Sistema Nacional de Sementes e Mudas, como está hoje a situação legal para o agricultor familiar que produz, armazena e planta sementes crioulas? No último mandato da presidenta Dilma houve avanços? E retrocessos?
GF: A lei de sementes reconhece desde 2003 as sementes crioulas e as variedades locais e garante ao agricultor familiar seu uso, troca etc. O decreto que instituiu a PNAPO ampliou esses direitos. É com essa base legal, por exemplo, que a ASA [Articulação do Semiárido Brasileiro] iniciará agora um novo programa para implementar 600 bancos de sementes comunitários na região. Duas principais ameaças pairam, contudo, sobre essa conquista. A primeira diz respeito à venda de milho em balcão realizada pela Conab [Companhia Nacional de Abastecimento]. A medida é sem dúvida necessária para garantir ração para os animais nesse período de seca prolongado. Por outro lado, está se mostrando uma verdadeira porta de entrada para o milho transgênico na região dado que a própria Conab já informou que não controla o tipo de milho que é vendido. Outro risco vem das discussões para se regulamentar no país uma lei de acesso à biodiversidade. Essa discussão tem envolvido vários ministérios, mas teve até agora pouca participação efetiva da sociedade civil. Aí se discute uma nova definição de sementes crioulas cujas implicações legais não estão claras. Por fim, podemos citar os programas governamentais de distribuição de sementes, que muitas vezes acabam por privilegiar a quantidade no lugar da diversidade e disseminam materiais pouco adaptados aos locais de cultivo ou desarticulado da ação dos bancos e casas de sementes locais.
CS – Em 2011 a ANA promoveu um encontro com outras redes chamado de Diálogos e Convergências, em que a pauta da Agroecologia demonstrou perpassar as bandeiras de luta e estratégias das outras redes como a Rede de Justiça Ambiental, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO, a Marcha Mundial de Mulheres – MMM, Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES e o Fórum Brasileiro de Segurança e Soberania Alimentar e Nutricional – FBSSAN, entre outros. Que ações e iniciativas a ANA e outras organizações do campo de defesa da Agroecologia podem realizar para enfrentar esse cenário desfavorável às sementes crioulas?
GF: O “Diálogos e Convergências” inaugurou um processo de interação entre essas diferentes redes que segue presente desde então, como se viu, por exemplo, no III Encontro Nacional de Agroecologia e no Simpósio sobre Saúde e Ambiente organizado pela Abrasco. Esse encontro se deu porque esses diferentes movimentos já tinham construído uma crítica própria em relação ao modelo dominante de agricultura e seus impactos sobre a sociedade, seja pelo viés da justiça ambiental, seja pelo da segurança alimentar. Assim que foi natural identificar nas experiências agroecológicas uma proposta convergente e unificadora dessas redes.
CS – Em 2012 a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – PNAPO e em 2013 foi construído o PLANAPO. Pelas contas do próprio governo são destinados apenas R$ 8,8 bilhões de investimento, uma pequena quantia se comparada aos investimentos do governo no agronegócio. O que esperar de investimentos e recursos para as políticas de valorização da agricultura familiar agroecológica para o próximo Plano?
GF: Agora em 2015 encerra-se o primeiro Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, sendo que este início de ano é exatamente o momento em que o governo está formulando o orçamento público para 2016-2019. É este o momento em que devem ser assignados recursos específicos para o próximo Planapo (2016-2018). Uma mobilização forte da sociedade agora pode resultar num avanço concreto em termos da política de agroecologia. Do contrário, o plano se enfraquecerá e será no máximo um agregado de ações que os ministérios desenvolverão com outros recursos e certamente com menor alcance.
CS – Em 2014, a Campanha Permanente Contra o Uso de Agrotóxicos tomou novo gás com o lançamento do filme O Veneno Está na Mesa 2, de Sílvio Tendler. O que esperar da Campanha Brasil Livre de Transgênicos em 2015?
GF: A luta contra os agrotóxicos no Brasil já vem de várias décadas e tem a ver com o próprio surgimento da agricultura alternativa. Nos últimos anos a questão foi retomada com mais força e abraçada por um conjunto amplo de organizações e movimentos que se sensibilizaram com o fato de o Brasil ter passado a ocupar a liderança mundial do uso de agrotóxicos. Nesse contexto estão também surgindo os fóruns estaduais de combate aos impactos dos agrotóxicos e foi criado o fórum nacional. Há ainda a própria campanha e o apoio decisivo de pesquisadores da área. O Pronara é fruto dessa articulação, que teve ainda a contribuição do Consea, dos Ministérios Públicos Federal e do Trabalho, da ABA [Associação Brasileira de Agroecologia], da ANA e de outras redes, entidades e órgãos de governo. É um programa que goza de legitimidade e que deve sair do papel.
No campo dos transgênicos os desafios continuam sendo grandes, pois o Brasil é um dos principais mercados para as empresas da área e tem uma legislação frouxa em que tudo se aprova. Para além da soja, algodão e milho transgênicos, as empresas buscam agora liberação de eucalipto, cana e laranja e soja e milho resistentes ao 2,4-D, que é um herbicida extremamente tóxico.