G1, 30/01/2015, às 18:46, por Amelia Gonzalez
Lembrei-me de que foi naquele tempo que, em 1972, quando vivíamos por aqui o período da ditadura militar, uma revista em quadrinhos lançada pela editora Codecri começou a circular e a ser vorazmente consumida por estudantes e opositores do regime. Chamava-se “Fradim”, era escrita e desenhada por Henfil, e tinha entre os personagens o Bode Orelana, a Graúna, o nordestino Zeferino, os frades Cumprido e Baixim. As histórias eram vividas num sertão nordestino, àquela época cheio de privações.
A crítica aos costumes da classe média enlevada pela farsa de segurança e tranquilidade transmitida pelo governo militar e ao cerceamento da liberdade era feita com humor, tendo como cenário o bioma caatinga, semiárido brasileiro, na região nordeste do país.
Na mesma época, a Revolução Verde se espalhava também com falsas promessas, de conseguir ampliar a produção de alimentos usando pesticidas ou importando plantas e bichos de uma região para outra sem atentar para detalhes como inadaptação ao ambiente. Não foi preciso muito tempo para que as doenças causadas pelo excesso de defensivos começassem a se alastrar e para que o prejuízo causado pelos erros ambientais pusesse as contas no vermelho.
Transformação socioambiental
É bom relembrar esses fatos para entender a importância da transformação socioambiental daquele bioma. Quando recebi o e-mail, que falava em estratégias ecológicas e sociais implementadas pelos agricultores familiares, busquei contato com as duas organizações responsáveis pelo estudo: a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e o Instituto Nacional do Semiárido.
Conversei, por telefone, com Luciano Marçal, da AS-PTA, entidade que integra a ASA. Como não podia deixar de ser, a conversa começou pelo clima: era bem pouco provável supor, há trinta anos, que o Sudeste estivesse vivendo uma seca semelhante à que flagela o semiárido desde sempre. Mas, nem de longe, estamos vivendo ainda situação igual àquela.
“Pelas características da região, todos os anos temos aqui um período chuvoso bem marcado, de 4 a 5 meses, e estiagem de 7 a 8 meses. De dez em dez anos, no entanto, temos uma seca mais prolongada, como está acontecendo agora. Mas, dentro deste cenário, estamos vivendo a seca mais severa dos últimos 50 anos. Com chuvas muito abaixo da média”, contou-me Luciano, detalhando ainda um pouco mais sobre a região, que tem hoje 1,7 milhão de famílias de agricultores.
Eis a questão. Com a terra esturricada pela falta de chuva, de que maneira é possível pensar em continuar produzindo alimentos e criando gado? Com a ajuda governamental, sim, que há anos vem fornecendo um dinheiro muito bem-vindo, via programas de transferência de renda, que tem sido a salvação nos dias de total privação.
Mas, além disso, organizando-se em associações, com muito método. Só assim é possível explicar, por exemplo, o dado estatístico que tem deixado muitos agricultores da região bastante orgulhosos: 35% da agricultura familiar do Brasil vêm do semiárido.
“Esse é um dado importante, mas presta atenção em outro dado: essas 1,7 milhão de famílias do semiárido, que produzem esse montante de alimentos, ocupam apenas 5% da terra da região. O restante é ocupado por grandes agricultores. O acesso à terra segue sendo uma demanda que precisa ser mais bem resolvida pelo governo”, disse Luciano.
Enfrentar a seca
Quem tem sua terrinha, porém, não quer mais sair de lá, como no passado. A capacidade de recuperar sua produção assim que passa o período de estiagem tem motivado as famílias, garante Luciano. E isso começou a ser conquistado com o programa de cisternas rurais, um equipamento de fácil construção que há quase 15 anos vem oferecendo solução rápida para enfrentar a seca estocando água da chuva. Hoje, mesmo nos períodos de seca, também não se vê mais as cenas que eram comuns, de saques a supermercado por causa da fome.
“Os fluxos migratórios, de fato, diminuíram muito. Nosso trabalho, com essa pesquisa que estamos começando agora a divulgar, foi entender quais mudanças estruturais permitiram que as famílias melhorassem sua produção. Há o papel das políticas sociais de transferência de renda do governo e há também um conjunto de inovações que ajudaram os agricultores a estocar sementes e uma parte do rebanho para continuar a produção quando a chuva chegar”, disse Luciano. Ele explica que, a essa capacidade de as famílias se recomporem rapidamente os pesquisadores deram o nome de resiliência.
O mais importante desse processo, disse o representante da ASA, foi a descoberta que a sociedade civil fez, de que as famílias precisam de soluções locais, desconcentradas. Além de as cisternas promoverem acesso à água de qualidade também para beber e cozinhar, outro benefício importante foi dar mais tempo às mulheres.
Elas sempre tiveram o papel de ir buscar água, geralmente em poços que ficavam muito longe da casa, o que lhes tirava o convívio com os filhos e a possibilidade de ajudar em outras tarefas, como a de cuidar de um quintal diversificado com pequenas plantações de hortaliças, criação de aves, abelhas e outros pequenos animais, como cabra, que ajudam a manter o sistema produtivo.
A solução no próprio semiárido
O último censo mostrou que existem 700 mil cisternas construídas, mas Luciano Marçal acredita que esse número já seja muito maior e esteja na casa de 1 milhão. Resumindo: a pesquisa mostra que a solução do semiárido está no próprio semiárido, disse ele.
Perguntei se o desejo é fazer expandir a região e atrair mais empresas de grande porte para proporcionar o desenvolvimento “as usual”. Marçal prefere dizer que, antes, é preciso dar força e desenvolver os mercados locais, num movimento de baixo para cima.
“Tem até casos como a Puma, que vem aqui comprar algodão colorido orgânico de produtores da região. Mas o que vai transformar de fato a realidade é a força que se dá aos produtores locais. Programas de governo, como aquele que obriga as escolas a usarem produtos daqui na merenda, são fundamentais não só para a economia como também para fortalecer a cultura ambiental. Acredita que havia escolas que davam salsicha com macarrão para as crianças comerem no almoço? Agora elas têm até doce de umbu na sobremesa, produzido aqui”, conta Luciano.
É um modelo muito semelhante ao que os idealizadores de um sistema econômico diferente pensam para enfrentar os tempos que virão. Tornando as comunidades mais capazes é possível imaginar que as soluções possam ser pensadas exatamente onde nascem os problemas. Não em escritórios longínquos, aclimatados, que conhecem bastante a teoria, mas pouco a prática.
Fotos: Quadrinho do Henfil (Reprodução/Globonews)Luciano Marçal (Ana Lira/Acervo ASA)