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CARTA ABERTA SOBRE A POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS GENÉTICOS DA AGROBIODIVERSIDADE E A CONSULTA PÚBLICA REALIZADA PELO MAPA

No início de janeiro, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, por meio da Secretaria de Inovação, Desenvolvimento Rural e Irrigação, submeteu à consulta pública, por um prazo de 60 dias, uma proposta de uma Política Nacional de Recursos Genéticos da Agrobiodiversidade (Portaria nº 1, de 6 de janeiro de 2020).

A forma como foi apresentada e consultada e o conteúdo desta Política Nacional de Recursos Genéticos da Agrobiodiversidade (PNRGA) indica uma série de preocupações aos agricultores, povos indígenas e comunidades tradicionais, resumidos brevemente nesta carta de posicionamento.

Algumas sugestões formais de alteração do texto foram submetidas no prazo (já finalizado), mas permanece a importância do debate público e aberto sobre as propostas do governo federal.

a) Ausência de participação democrática e consulta aos sujeitos que conservam e promovem a agrobiodiversidade

A consulta pública apresentada pelo MAPA foi disponibilizada apenas de forma virtual, sem qualquer processo de participação ou debates presenciais. Em verdade, vários espaços de controle e participação que poderiam debater e sugerir sobre o tema foram extintos pelo governo de Jair Bolsonaro, como é o caso da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

Consultas públicas virtuais, com prazo de apenas 60 dias, sem debates e sem vinculação da posição de agricultores familiares, guardiões de sementes, povos indígenas e comunidades tradicionais não podem ser consideradas formas democráticas e participativas. Ao revés, são apenas procedimento puramente formais, que desvelam o autoritarismo que se instala no Brasil.

Por outro lado, diversos acordos e tratados internacionais, garantem a participação ativa dos sujeitos que promovem e ampliam a agrobiodiversidade nas decisões administrativas e processos legislativos que envolvam a prática e o conhecimento desses povos.

A Convenção Sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo decreto 2.519/1998, no artigo 8J, garante “participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas” na conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica. Já o Tratado Internacional Sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura, promulgado pelo Decreto Federal nº 6.476/2008, no artigo 9C, garante expressamente aos agricultores “o direito de participar na tomada de decisões, em nível nacional, sobre assuntos relacionados à conservação e ao uso sustentável dos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura”.

Os povos indígenas e comunidades tradicionais devem ser consultados de modo livre, prévio e informado antes de qualquer decisão ou medida que afetem seus bens ou direitos, conforme garante a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho, promulgada pelo Decreto nº 5.051/2004.

b) Conservação dos recursos genéticos da agrobiodiversidade, em bases “científicas e economicamente viáveis” (artigo 3, inciso I)

É diretriz da PNRGA a “conservação dos recursos genéticos da agrobiodiversidade, em bases científicas e economicamente viáveis, abrangendo todas as espécies de plantas, animais e microrganismos”.
Ocorre que, além das bases científicas e economicamente viáveis, a conservação dos recursos genéticos perpassa pela promoção da cultura em suas várias formas de expressão como a cultura alimentar, a valorização e uso de plantas medicinais, dentre outras, fruto dos conhecimentos tradicionais dos agricultores, povos e comunidades tradicionais.

Os parâmetros de viabilidade não são apenas econômicos ou científicos, mas devem incorporar as decisões de salvaguarda ou promoção para preservação da vida dos povos, com base nas diversas dimensões culturais, como é garantido nos artigos 216 e 225 da Constituição Federal.

A Constituição reconhece como patrimônio cultural do país os bens de natureza material e imaterial (art. 216), tomados individualmente ou em conjunto, incluindo-se as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Deste modo, o Estado Democrático de Direito reconhece e deve proteger as interações positivas entre homem e natureza. O Patrimônio Imaterial e material gerado através da conservação on farm pelos agricultores vem gerando agroecossistemas de larga base genética e uma pluralidade de conhecimentos associados. Este patrimônio genético e cultural é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história.

Vale memorar que, em 2010, houve reconhecimento do Sistema Agrícola do Rio Negro e, em 2018, do Sistema Agrícola Tradicional das comunidades quilombolas do Vale da Ribeira, com inclusão no Livro dos Saberes do IPHAN na modalidade de bens culturais, ancorado no Decreto nº 3.551/2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial de criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.
Ademais, a FAO, criou em 2002 o “Sistema Agrícola Tradicional Globalmente Importante” (GIAHS), com o objetivo de preservar sistemas agrícolas que asseguram harmoniosa interação entre comunidades tradicionais e o meio ambiente. No Brasil, na Serra do Espinhaço, onde vivem comunidades tradicionais, o sistema agrícola de apanhadoras de flores sempre-vivas se tornou o primeiro patrimônio agrícola mundial do país.

A Lei da Biodiversidade (13.123/2015) também reconhece os conhecimentos tradicionais associados como “informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio genético”. Deste modo, não é só o que “economicamente viável” e “cientificamente embasado” é que deve ser conservado, vez que nosso próprio sistema normativo reconhece e valoriza diversas formas de conhecimentos e expressões: culturais, alimentares, de saúde e reprodução da vida.

Ademais, a consulta não menciona quais são tais critérios econômicos e científicos e quem irá estabelecê-los.

b) Valoração da Agrobiodiversidade (art. 3, inciso IV), ampliação de parcerias público-privadas (art. 5º, inciso V) e divulgação de informações ao “setor produtivo (art. 3º, inciso VI)

No texto da PNRGA há a menção de estímulo ao mecanismo de parcerias público-privadas, da “valoração” da agrobiodiversidade além da divulgação de informações sobre os recursos genéticos ao “setor produtivo”. Os termos exemplificam o modelo de privatização e apropriação dos conhecimentos tradicionais e do patrimônio genético por empresas, com auxílio e organização diretamente estatal.
Isto é, o Estado facilita, mapeia e organiza as informações produzidas pelos agricultores/as, indígenas e comunidades tradicionais e disponibiliza aos setores privados ou produtivos, sem mencionar qualquer tipo de consulta, consentimento ou fiscalização pelos detentores desse conhecimento.

Além disso, mercantiliza, monetariza e financeiriza a agrobiodiversidade a partir de uma “valoração” de mercado, sendo que tais patrimônios e conhecimentos advém de uma multiplicidade de valores às comunidades, que valor financeiro não abarca.

c) Monitoramento, controle, sistematização da agrobiodiversidade sem contrapartida ou instrumento legal

Na PNRGA os termos que mais aparecem referem-se ao mapeamento e monitoramento dos recursos genéticos e da agrobiodiversidade, como: “promover a sistematização e documentação das informações relacionadas à agrobiodiversidade”; “estruturar, manter e disponibilizar as informações sobre recursos genéticos”; “estabelecer conexão entre as redes de informação nacionais e internacionais existentes”.
As perguntas que devem ser feitas são: para quem e para que serve esse monitoramento?

Não há na política nenhuma indicação de ação concreta de promoção da agrobiodiversidade, apenas termos genéricos como “apoio”, “promoção” ou “articulação”, todos verbos abertos que não explicitam que tipos de ações serão tomadas. Ainda que o desmembramento de atividades caiba a um programa (e não à política), uma política deve orientar linhas objetivas de direções, para que haja segurança em sua implementação.

Na forma do atual texto há um risco real de mapeamento e disponibilização das informações, sem participação ativa dos agricultores, indígenas e comunidades tradicionais, sem uma clara contrapartida ou indicação de promoção da agrobiodiversidade. Além disso, há a possibilidade do mapeamento sem controle, já que não se prevê nenhum órgão de fiscalização com participação social da política (como os conselhos extintos).

Também não se aborda o direito de veto ao acesso e da decisão de não inclusão dos recursos genético no mapeamento. A política pode facilitar o acesso aos recursos, sem controle dos povos e agricultores e sem uma política concreta de incentivo e promoção, que são conceitos muito abertos.

d) “Identificar, documentar e monitorar bancos de germoplasma locais, guardiões da agrobiodiversidade e feiras de sementes crioulas no território nacional (Art. 4º, inciso IV, alínea a)

Novamente a política traz o monitoramento das sementes crioulas, bancos e casas de sementes e guardiões, sem apontar qualquer indicativo que de fato tal monitoramento trará promoção da agrobiodiversidade e não mais ônus e fiscalização aos agricultores.

Deve-se lembrar que as sementes e mudas crioulas estão na exceção do regime jurídico de regulação pelo Estado brasileiro. Segundo a Lei 10.711/2003, que dispõe sobre o sistema nacional de sementes e mudas, a cultivar local, tradicional ou crioula é “variedade desenvolvida, adaptada ou produzida por agricultores familiares, assentados da reforma, agrária ou indígenas, com características fenotípicas, bem determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades e que, a critério do Mapa, considerados também os descritores socioculturais e ambientais, não se caracterizem como substancialmente semelhantes às cultivares comerciais”.

Na lei também há exclusão de necessidade de cadastro das sementes crioulas no Registro Nacional de Sementes e Mudas (RENASEM) e no Registro Nacional de Cultivares (RNC), porque justamente não se comparam às cultivares comerciais. As sementes crioulas são heterogêneas, variáveis, localmente adaptáveis e trazem em sua genética os melhoramentos ancestrais dos agricultores.

Logo, não há previsão de monitoramento pelo Estado dessas sementes, justamente porque não há regulação. Deste modo, não há amparo legal para o monitoramento e documentação pelo Estado das sementes crioulas. Não se fiscaliza o que não está previsto em lei.

Novamente pergunta-se: para que o monitoramento se não há o indicativo de nenhuma ação concreta e real de promoção e apoio a esses agricultores?

Cabe ao Estado proteger e salvaguardar as condições para que os agricultores permaneçam com seu trabalho, neste caso o MAPA tem se imiscuído de fiscalizar as ameaças às sementes crioulas, como é o caso dos cultivos transgênicos de polinização cruzada, como o milho, e a aplicação abusiva de agrotóxicos nas propriedades circunvizinhas que contamina as variedades locais.

Também não há indicativo de apoio para construção e proteção de mais casas de sementes gestionadas pelas próprias comunidades, pela estipulação de zonas livres de transgênicos e agrotóxicos que protejam a agrobiodiversidade local, de assistência e assessoria técnica para apoio às comunidades respeitando a cultura e costumes locais.

Por estes motivos, as organizações signatárias, reivindicam:

a) A reformulação da consulta de forma participativa, democrática, com tempo e mecanismos de submissão hábeis à realidade camponesa brasileira;
b) A retomada e indicação de conselhos para fiscalização e averiguação da PNRGA, com ampla e democrática participação social;
c) A consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais sobre a política, com poder de veto;
d) A proteção da agrobiodiversidade com base nos conhecimentos tradicionais, científicos, culturais e socioambientais dos povos brasileiros e proteção do Direito Humano à Alimentação Adequada e não sob o aspecto econômico ou de financeirização;
e) A indicação concreta das formas e apoio e proteção da agrobiodiversidade;
f) A exclusão da menção ao monitoramento bancos de germoplasma locais, guardiões da agrobiodiversidade e feiras de sementes crioulas no território nacional, eis que sem qualquer previsão legal e contrapartida aos agricultores;
g) O esclarecimento pelo MAPA de que forma se darão as parcerias público-privadas e a disponibilização de informações aos setores privados e produtivos
h) Que a Política de Agrobiodiversidade esteja alinhada e harmonizada com a reconstrução e garantia orçamentária para a implementação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e com a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.

 

ARTICULAÇÃO PACARI – RAIZEIRAS DO CERRADO
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE AGROECOLOGIA – ABA
CENTRO DE TECNOLOGIAS ALTERNATIVAS DA ZONA DA MATA – CTA-ZM
FEDERAÇÃO DE ÓRGÃO PARA ASSISTÊNCIA SOCIAL E EDUCACIONAL – FASE
GT BIODIVERSIDADE DA ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA
GT MULHERES DA ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA
MOVIMENTO CAMPONÊS POPULAR – MCP
MOVIMENTO CIÊNCIA CIDADÃ – MCC
MOVIMENTO DOS PEQUENOS AGRICULTORES – MPA
REDE DE COMUNIDADES TRADICIONAIS PANTANEIRA
REDE SEMENTES DA AGROECOLOGIA
SOCIEDADE BRASILEIRA DE ETNOBIOLOGIA E ETNOECOLOGIA – SBEE
TERRA DE DIREITOS