Reportagem de Eric Nepomuceno para a CARTA CAPITAL, 13/04/2010 | Na Argentina, a Justiça do estado de Santa Fé acaba de tomar uma decisão inédita: determinou, em sentença definitiva, a proibição do uso de glifosato em fumigações agrícolas nas zonas urbanas da cidade de San Jorge. Quase todo o glifosato usado no país é produzido pela Monsanto, maior fabricante mundial de sementes transgênicas e de produtos agroquímicos.
A sentença da Justiça de Santa Fé trouxe ainda uma novidade significativa: deu ao governo estadual e à Universidade Nacional do Litoral o prazo de seis meses para que se comprove que os agroquímicos (evitou-se o uso de “agrotóxicos”) não são prejudiciais à saúde. Assim, inverteu o ônus da prova: até agora, os afetados (em sua imensa maioria pequenos camponeses de escassos recursos) é que tinham de provar que seus padecimentos estavam relacionados ao glifosato. Ao passar para os grandes impulsionadores do modelo de agronegócios a obrigação de comprovar que os efeitos do produto químico não são prejudiciais à saúde, sentou as bases para uma nova postura judicial, com maior proteção às eventuais vítimas.
Atualmente, mais da metade (cerca de 56%) de toda a terra cultivada na Argentina está ocupada pela soja. Entre 2008 e 2009 (os dados são do ministério de Agricultura argentino), de um total de 31 milhões de hectares cerca de 17 milhões e 500 mil foram cobertos por soja. Em 2010, o cultivo chegará a 19 milhões de hectares. Um dos pilares do modelo de negócio é a soja transgênica (96% da produção), que utiliza o glifosato, cuja marca mais usada é o ‘Roundup’, fabricado pela Monsanto. O efeito desse agroquímico é radical: uma vez fumigado sobre a terra, a única coisa que cresce é a soja cuja semente também é produzida pela Monsanto. Todas as outras plantas morrem. Dados oficiais indicam que em 2009 ao menos 175 milhões de litros do produto foram espalhados na Argentina. Cientistas e pesquisadores independentes asseguram que esse cálculo é conservador: na verdade, o volume total seria de 280 milhões de litros.
Nas críticas e denúncias, uma das vozes mais contundentes é a do professor Andrés Carrasco, que em abril do ano passado confirmou, por meio de estudos rigorosos, que o glifosato pode causar efeitos devastadores, provocando má-formação genética, deformação em embriões e alterações nas células. Em contato com o produto, o ser humano pode sofrer conseqüências como aborto espontâneo, ou gerar crianças com deformações que vão de acefalia e lábio leporino a mutilações de membros, além de distúrbios respiratórios. Também elevado é o risco de desenvolver diferentes tipos de câncer, especialmente linfoma e leucemia. Diretor do Laboratório de Embriologia Molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires, o professor Carrasco declarou que, graças ao silêncio e à omissão de diferentes governos (a começar pelo de Carlos Menem), seu país havia se transformado “no mais extenso campo de experimentação biotecnológica do mundo”.
Carrasco não foi o único cientista a denunciar esses efeitos. Ao menos outros quatro pesquisadores de prestígio indiscutível apontaram os graves riscos causados pelos agroquímicos e as sementes transgênicas. Os principais defensores da tese que esses produtos são inócuos são as federações do agronegócio e de produtores rurais, que esgrimem alguns relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização para Agricultura e Alimentação (FAO em inglês). A Justiça do estado argentino de Santa Fé ressaltou, porém, que há anos cientistas de todo o mundo criticam esses relatórios, que não se baseiam em estudos próprios ou independentes, mas nos que foram elaborados pelas empresas produtoras de agroquímicos e sementes geneticamente modificadas.
A sentença agora ditada pela Câmara de Apelações de Santa Fé significa uma profunda reviravolta nos rumos desse embate entre os críticos do uso de agrotóxicos, cujos efeitos sobre a vida foram comprovados em exames rigorosos, e os defensores de seu uso, pilar principal do modelo de agronegócio argentino. Acredita-se que o próximo passo será estender a todo o estado de Santa Fé a medida que agora se restringe à zona urbana da cidade de San Jorge, cujos 25 mil habitantes vivem a uns 140 quilômetros da capital estadual. A denúncia que deu origem ao processo partiu de um pequeno grupo de camponeses e moradores da área rural, e teve uma primeira sentença favorável em março do ano passado. De imediato os produtores de soja, a prefeitura local e o governo do Estado recorreram. O recurso foi julgado e teve sentença definitiva: fica proibida a fumigação terrestre a menos de 800 metros de moradias familiares, e a aspersão aérea a 1.500 metros.
A transformação mais radical está justamente na transferência do ônus da prova. Até agora, os queixosos (indígenas, camponeses, moradores da periferia urbana) tinham que comprovar cientificamente que os agroquímicos prejudicaram sua saúde. Esse, aliás, tem sido o principal ponto de defesa tanto do fabricante dos produtos como das autoridades estaduais, pressionadas pelos grandes conglomerados do agronegócio, em todo o país. Todos afirmam, em uníssono, que as denúncias eram falhas pois, antes de decidir qualquer tipo de proibição, os queixosos deveriam levar aos tribunais provas incontestáveis de que os efeitos dos produtos agroquímicos sobre a saúde e o meio ambiente são prejudiciais. De nada adiantavam estudos rigorosos e independentes, uma vez que não haviam sido encomendados pelos autores das denúncias levadas aos tribunais.
Agora caberá às autoridades estaduais e à Universidade Nacional comprovar que o glifosato não é o responsável pelos danos apontados. O mais curioso é que o governador de Santa Fé, Hermes Binner, é médico. Será do seu governo o ônus de mostrar que todos os casos de queixas registrados no pequeno município de San Jorge, cuja área é totalmente ocupada por plantações de soja, não têm nada a ver com a quantidade do glifosato espalhada sobre campos e população.