Como será o amanhã? Difícil arriscar uma resposta. Um pedacinho invisível de material genético envolto por uma capa proteica fez o mundo parar e abalou a ilusão de que o ser humano está no controle. A pergunta que nos fazemos diariamente é: “quando tudo vai voltar ao normal?” No meio de uma pandemia que já marcou de forma tão trágica a história recente da humanidade, o que devemos entender por “voltar ao normal”? Não será a Covid-19 produto daquilo que entendemos por normalidade? A pergunta que parece mais decisiva hoje é saber que lições aprenderemos dessa crise. Ou mesmo se aprenderemos alguma lição. Transformaremos nossa presença no planeta ou voltaremos à normalidade anterior ao último 11 de março, quando a Organização Mundial da Saúde decretou o estado de pandemia?
O futuro, mais do que nunca, está em aberto. Não temos evidentemente como arriscar nenhuma resposta certeira. Mas podemos acreditar que uma pista virá da forma como a humanidade passará a lidar com a questão climática no pós-pandemia. Excluindo as manifestações de negacionistas, terraplanistas e lobistas oportunistas de toda ordem, existe consenso científico bem estabelecido em relação aos efeitos do aquecimento global sobre a vida na Terra. Apesar dos impactos já visíveis, praticamente nada foi feito na proporção que a situação está a exigir. Vivemos no curto, curtíssimo prazo, enquanto a questão climática aponta para o longo prazo. Terá o imediatismo do coronavírus colocado o longo prazo na ordem do dia?
A incerteza que vivemos de forma alguma é sinônimo de imobilismo. O presidente conseguiu achatar a Terra mas não a curva daquilo que denominou “gripezinha”. Enquanto isso, pressionado pela sociedade, o Congresso imbuiu-se de seu dever e aprovou renda básica emergencial para a população mais vulnerável aos efeitos secundários da pandemia. O STF suspendeu a liberação automática de agrotóxicos proposta pelo Ministério da Agricultura. Os movimentos sociais do campo e da cidade apresentaram proposta para garantir a segurança alimentar e nutricional para todos/as partir da produção da agricultura familiar e da retomada de políticas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Para além dessas e de outras ações urgentes é necessário dar passos imediatos na construção do futuro pós-pandemia. Para isso, o momento cobra atenção para as “alternativas” de produção e consumo de alimentos saudáveis que vêm sendo desenvolvidas há décadas no país. Em pouco dias, mapeamentos colaborativos propostos pelo movimento Slow Food e pelo Idec deram visibilidade a centenas de iniciativas locais de abastecimento em todas as regiões do país. Muitas delas já existiam, como os estoques coletivos de sementes no semiárido. Outras foram criadas no bojo da crise do coronavírus. Como dão respostas efetivas ao momento de crise aguda, todas estão progredindo. Com o tempo, vamos entender melhor o significado desse movimento emergente. Mas uma conclusão já pode ser tirada: na hora da crise, os sistemas de abastecimento alimentares locais baseados na produção familiar de base agroecológica são aqueles com capacidade de dar resposta aos efeitos sociais, econômicos e sanitários que se retroalimentam reciprocamente. É isso que se entende por resiliência sistêmica, uma qualidade absolutamente indispensável a ser desenvolvida frente à crescente vulnerabilidade dos sistemas alimentares comandados pela lógica da agricultura industrial.
Este ano o agronegócio colherá mais de 120 milhões de toneladas de soja, sendo mais da metade para exportação. Diante da imprevista, mas não surpreendente realidade da pandemia, há que se perguntar qual será a utilidade imediata dessa produção no contexto atual em que a tragédia da fome e da desnutrição volta a assolar o cotidiano? A saída da crise desencadeada pelo surto da Covid-19 requer decisivas e rápidas mudanças nas orientações políticas e econômicas. Além de promovermos sociedades mais igualitárias e justas, essas mudanças passam pela indispensável necessidade de revisão do papel que o ser humano acredita ocupar no topo da hierarquia entre as espécies vivas. O Corona colocou em xeque essa suposição. Entre as mudanças indispensáveis, destaca-se a adesão atual aos sistemas locais de produção e consumo baseados na agricultura familiar e na agroecologia. Na realidade do Brasil, isso implica a realização da reforma agrária e a implementação de outras políticas públicas que estimulem o que a agricultura familiar melhor sabe fazer: produzir alimentos saudáveis. Fortalecer o espaço para o desenvolvimento das alternativas é construir a nova normalidade que precisamos.
Armazenamento coletivo de sementes crioulas no Semiárido: histórias necessárias em tempos de pandemia e crise de abastecimento alimentar
A formação de estoques é parte da história de vida dos/as agricultores/as familiares do Semiárido. Armazenar sementes, água e alimentos tem permitido que as famílias atravessem períodos críticos de seca. Os Bancos e Casas de Sementes, assim como as cisternas, são equipamentos bastante disseminados na região para o armazenamento de recursos. Além de armazenar sementes com qualidade, os bancos e casas comunitárias garantem o fortalecimento de práticas coletivas associadas a estratégias de valorização e de cuidados com a agrobiodiversidade. O aprendizado que vem do Semiárido é sobre estocagem solidária que permite que as famílias intercambiem fazeres e conhecimentos e fortaleçam o entendimento coletivo de que as sementes crioulas são um bem comum a ser protegido. Clique aqui e leia a matéria do mês.
Sementes crioulas na mídia
Empresas públicas resistem ao domínio das multinacionais de sementes
• Conheça o trabalho de melhoramento de variedades de milho de polinização aberta desenvolvido pela Epagri, em Santa Catarina, que está deixando para trás as sementes transgênicas.
Reconhecimento aos povos tradicionais
• O sistema de agricultura tradicional das apanhadoras de flores da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, é o primeiro patrimônio agrícola mundial reconhecido pela FAO no Brasil. “É preciso garantir o direito ao uso da biodiversidade, das sementes crioulas, dos territórios tradicionais. Que esse selo traga garantias e, principalmente, o acesso a políticas públicas. Essa conquista é de todos os povos tradicionais do Brasil”, declarou Maria de Fátima Alves, membro da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas da Serra do Espinhaço de Minas Gerais (Codecex), na cerimônia de entrega do selo.
Uma consulta nem tão pública
• Logo na virada do ano, o Ministério da Agricultura abriu consulta pública virtual sobre sua proposta para a criação da Política Nacional de Recursos Genéticos da Agrobiodiversidade. Organizações ligadas ao GT Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia elaboraram uma carta em que criticam tanto a forma como se deu esse debate, sem garantir ampla participação das comunidades interessadas, como também algumas de suas propostas, entre elas mecanismos de financeirização da agrobiodiversidade. Confira aqui o documento enviado ao MAPA.
Sin maíz no hay país
• O Senado mexicano aprovou lei federal que declara o milho nativo como patrimônio alimentar nacional e estabelece, entre outros, alguns mecanismos para sua proteção, produção, comercialização, consumo e diversificação. “O milho é o alimento e o alimento é a base da saúde. A maioria das doenças são causadas pela má alimentação. O fundamento da nossa alimentação é o milho, que é mais que um alimento, é também a essência da nossa cultura”, declarou a senadora Jesusa Rodríguez, coautora da lei de fomento e salvaguarda do milho nativo.
Também coautora da lei, a senadora Ana Lilia Rivera comemora a aprovação da medida que reconhece o milho nativo como um direito humano à cultura e à saúde e denuncia os interesses corporativos que visam saquear esse patrimônio do povo e patentear as sementes.
Este Boletim conversou com Eckart Boege, professor emérito do Instituto Nacional de Antropologia e História de Veracruz, México, e integrante da campanha “Sin Maíz No Hay País”, que igualmente celebra a aprovação da lei. Mas aponta alguns desafios que vê adiante. O primeiro deles é o mesmo de sempre: até que ponto a lei gerará efeitos práticos e não permanecerá apenas como um instrumento declaratório? Boege pontua essa questão lembrando que o projeto de lei foi duramente criticado e atacado pelas empresas de biotecnologia e por setores do governo que apostam na agricultura industrial. Outro desafio diz respeito ao fato de que segue em vigor a lei de sementes, que obriga os produtores a registrarem suas sementes para fins de comercialização. Mas para Boege, o maior dos desafios, e que a lei não enfrenta, está ligado à possibilidade de o México assinar um novo tratado de livre comércio (TEMEC) que teria como um de seus componentes a adesão obrigatória à ata de 1991 da UPOV (acordo internacional de proteção de novas variedades) e uma nova lei de recursos fitogenéticos, que acabariam por fortalecer os direitos de propriedade intelectual das empresas sobre a diversidade genética.
Saudar a lutas das mulheres no 8 de Março: relembrando a Plenária das Mulheres no IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado em Belo Horizonte, 2018, e visitando a XI Marcha Pela Vidas das Mulheres e Pela Agroecologia, realizada anualmente na Paraíba.
• Assistir ao vídeo sobre a agroindústria de derivados de milho crioulo em São João do Triunfo, Paraná. Tem comida livre de transgênicos e agrotóxicos aí! • Conferir o livro Pesquisa em Agroecologia: conquistas e perspectivas, recém-lançado pela Editora da UFV/Funarbe, que traz um panorama dos principais temas debatidos no Simpósio de Pós-Graduação em Agroecologia (SIMPA-UFV) entre 2012 e 2018. • Valorizar a agricultura familiar, a agroecologia e a produção de comida de verdade e com qualidade em tempos de pandemia acessando uma série de vídeos especiais produzidos pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). |
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EXPEDIENTE Sementes Crioulas é uma iniciativa da AS-PTA – Agricultura Familiar e Agroecologia Edição e redação: Gabriel Bianconi Fernandes Contato: revista@aspta.org.br
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