Arigo de Catia Grisa e Paulo Niederle
Sul21, 06 de maio de 2020
Diversas discussões têm pautado a urgência de políticas públicas que respondam aos efeitos sociais da pandemia. As medidas para enfrentar o problema imediato envolvem o suporte direto às pessoas, grupos, entidades e empresas que estão em situação de maior vulnerabilidade. Para tanto, já existem alguns mecanismos institucionais que estão sendo utilizados e devem ser potencializados, tais como: renda básica emergencial; fortalecimentos das feiras livres e outros circuitos curtos; distribuição de alimentos para população em situação de risco; disponibilização de recursos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); adaptação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); renegociação das condições do crédito rural e seguro agrícola; dentre outras.
No entanto, estes mecanismos são insuficientes para o enfrentamento dos efeitos de médio e longo prazo, sobretudo no que tange ao enfrentamento da fome e insegurança alimentar e nutricional e das restrições em termos de renda da população em geral. É urgente inovar na produção de políticas alimentares e, tendo isso em vista, a partir de experiências já conhecidas e da discussão com outros pesquisadores**, propomos um conjunto inicial de ações para enfrentar a crise de longa duração que se coloca no horizonte. Estas propostas dizem respeito, sobretudo, à criação de demanda para os produtos da agricultura familiar, e há duas razões principais para tanto.
Primeiro, porque a crise que está se iniciando não poderá ser resolvida apenas com suporte creditício ou outros instrumentos tradicionais para o aumento da produção agrícola. O maior problema provavelmente estará na redução do consumo em virtude da crise econômica e suas conseqüências (desemprego, redução do consumo, fechamento de empreendimentos, etc.). Segundo, porque somente a agricultura familiar poderá garantir que o combate à fome se dê a partir da melhoria do acesso à alimentação saudável, de maneira sustentável e inclusiva. Não é admissível combater o que vem pela frente repetindo os erros de políticas alimentares que, para favorecer a indústria alimentar, criaram enormes problemas ambientais, de saúde pública e socioeconômicos.
A experiência histórica e os prognósticos iniciais dos principais órgãos multilaterais relacionados com a agricultura e alimentação apontam que um dos dilemas dos próximos anos será a contração da demanda internacional em virtude de três fatores: (a) retração dos mercados devido à crise econômica em vários países; (b) exacerbação dos conflitos comerciais; (c) aumento das barreiras à exportação e importação. Em virtude disso, as empresas do agronegócio farão todo tipo de lobby (já começaram!) para afrouxamento das barreiras comerciais, apoio à exportação e redução de tarifas, o que sugará a imensa maioria dos recursos públicos destinados ao setor.
A competição também será muito forte no mercado interno, seja porque parcela da produção atualmente exportada terá que ser comercializada no mercado doméstico, seja porque a redução da capacidade de compra da população implicará em diminuição da demanda e pressionará pela redução dos preços. E isto será ainda mais grave porque o dólar tende a se manter em patamares elevados, pressionando os custos de produção.
A medida mais efetiva para reverter este quadro seria uma forte dose de intervenção estatal, com política de emprego e garantia de renda básica para a população durante vários anos. No entanto, isto implica em endividamento e esta não é a política do atual governo. Pelo contrário, como os últimos eventos já indicam, o que vem pela frente é um discurso ainda mais forte de corte dos “gastos públicos”, o que terá um efeito ainda mais perverso na redução da demanda. Ou seja, a suposta solução ajudará a agravar a crise.
A pergunta é: o que pode ser feito em termos de políticas alimentares para além daquilo que já existe e que, com um pouco de negociação e pressão política, teriam condições de ser implementadas, senão pelo governo federal, talvez pelos estados e municípios?
Primeiro, é urgente a efetivação e ampliação das compras institucionais. Não estamos falando “apenas” dos governos cumprirem com o disposto em lei e com as promessas já feitas de liberação de recursos para PAA e PNAE. Desde 2015, há normativos que orientam a aquisição de alimentos da agricultura familiar por todos os órgãos e autarquias da União. No entanto, esta norma não tem sido efetivada e, em virtude disso, ainda existe um enorme potencial de demanda do setor público federal. Ademais, é possível incorporar regras similares nos estados e municípios.
Segundo, a política de restaurantes populares avançou muito pouco no Brasil e, nos últimos anos, foi sucateada. Atualmente, já existem alguns governos retomando o tema. A agricultura familiar pode ser fornecedora exclusiva dos gêneros básicos, mas, mais do que isso, ela poderia contribuir inclusive na gestão dos empreendimentos, sobretudo em parceria com associações e cooperativas de consumidores. A articulação com os movimentos sindicais e sociais urbanos – incluindo associações de bairros nas periferias das grandes cidades – pode ser uma das vias para viabilização destas iniciativas. Destaca-se ademais o potencial deste tipo de ação para articular a agricultura familiar com as associações de bairros nas periferias das grandes cidades.
Os governos podem prover incentivos para a formação (infraestrutura e tecnologia da informação) e manutenção de associações e cooperativas de consumidores. Além de gerir pequenos restaurantes populares, estas organizações podem administrar lojas e pequenos mercados que comercializem (inclusive por meio de entregas em domicílio) alimentos da agricultura familiar. Estes estabelecimentos podem fornecer alimentos com preços subsidiados para grupos em situação de vulnerabilidade social, o que pode ser facilmente operacionalizado por meio de controle feito pela cooperativa ou associação em parceria com o Estado.
Aliada à proposta anterior, mas incorporando ações dos três entes da federação, está a ideia de mercados alimentares populares. Ao município caberia articular grupos de compras e prover espaços públicos que serviriam como ponto de comercialização, os quais podem ser geridos pela própria comunidade. Os estados, em parceria com as Ceasas e a Conab, garantiriam o fornecimento de alimentos de forma direta ou por meio do cadastramento de fornecedores da agricultura familiar. Além de fomentar o consumo de alimentos locais, estes mercados podem servir de reguladores dos preços executados pelos mercados privados.
Desde a década de 1970, o governo vem operando o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) em parceria com diversas empresas privadas e públicas (que recebem isenção de impostos), fornecendo acesso à alimentação para milhões de brasileiros todos os dias. Ao aderir ao programa, as empresas públicas ou privadas podem preparar e servir os alimentos diretamente aos trabalhadores, ou podem entregar cestas básicas; podem contratar outra empresa para administrar ou preparar os alimentos ou produzir as cestas; ou ainda podem operar por meio de tíquetes, vales, cupons, cartões etc. Sem alterar nada em termos de orçamento, pode-se garantir a participação da agricultura familiar neste processo. Também se pode direcionar parte dos valores dos tíquetes, vales ou cupons para aquisições diretamente da agricultura familiar (em feiras, mercados próprios, cooperativas de consumo etc.).
Todos os servidores públicos federais, estaduais e municipais recebem auxílio alimentação, mobilizando valores e quantidades expressivas na compra de alimentos. Pode-se pensar em algum mecanismo que direcione um percentual mínimo desses valores para as aquisições de alimentos da agricultura familiar ou de pequenas redes de supermercados. As orientações de aquisição de, no mínimo, 30% da agricultura familiar nas compras federais têm sido bem aceitas pela sociedade. Seria o momento de avançar para um uso direcionado da demanda de consumo dos servidores públicos no que tange à alimentação.
As medidas de apoio atualmente destinadas às pequenas empresas, voltadas à manutenção de empregos, terão alcance limitado e vida curta. A maioria dos restaurantes, por exemplo, enfrentará uma crise muito séria e de longo prazo, ainda mais se as medidas de convivência social mantiverem a necessidade de rígidos controles sanitários. Uma forma mais efetiva de apoio é conceder benefícios fiscais para que restaurantes adquiram produtos da agricultura familiar local. Muito provavelmente, esta isenção será compensada pelo recolhimento de impostos em outros elos do consumo local. De todo modo, é certo pelo menos que o custo desse benefício será muito menor que os subsídios atualmente concedidos às commodities, aos agrotóxicos e às indústrias de refrigerantes (cujos efeitos sociais e ambientais são amplamente conhecidos).
Da mesma forma que os restaurantes, os governos poderiam conceder benefícios fiscais para os pequenos mercados que comprarem, diretamente, produtos da agricultura familiar e da economia solidária. Isto dinamizaria a economia local e contribuiria na geração de renda para os pequenos agricultores (inclusão social e produtiva de diversos grupos sociais) e para os pequenos empreendimentos.
O contexto atual também deixou muito evidente que os sistemas de entrega dos alimentos em domicílio vieram para ficar. Há um grande risco de este mercado ser controlado por empresas globais que utilizam práticas predatórias de competição, incluindo trabalho precário ou escravo. Para evitar isso, é urgente criar normas que regulem este mercado. A agricultura familiar precisará competir com estes atores, mas, para tanto, necessitará de apoio em termos de tecnologia da informação e infraestrutura. A construção de mecanismos mais descentralizados e solidários de comércio virtual também seria de grande valia para incentivar pequenos restaurantes que, cada vez mais, estão à mercê das regras impostas pelas empresas de delivery.
Todas estas propostas produziriam repercussões em termos de desenvolvimento local, geração de renda, inclusão socioprodutiva, preservação ambiental, redução na circulação dos alimentos em grandes distâncias, e acesso a alimentos frescos, saudáveis e agroecológicos. Elas foram pensadas tendo em vista a crise econômica e social que teremos pela frente, mas, igualmente, outras pandemias que já estão em nosso meio (mudanças climáticas, fome, pobreza e obesidade). O foco aqui são as respostas mais sistêmicas à necessidade de aumento da demanda por produtos da agricultura familiar, mas sem perder de vista que o contexto político e econômico não será favorável a medidas que incorram em forte endividamento público.
O ideal seria ter a alimentação como eixo estruturante de uma política de Estado, sob responsabilidade de uma câmara interministerial que se ocupasse de integrar múltiplas ações e políticas de combate à fome e promoção da alimentação saudável e sustentável. No entanto, as experiências recentes de governança multisetorial de políticas públicas nos deixam reticentes com relação à viabilidade desta proposta. Uma primeira preocupação é como fazer isso com um Ministério da Agricultura que não prioriza a agricultura familiar e dá pouca ou nenhuma atenção ao tema do abastecimento interno.
Um Ministério da Alimentação também seria uma possibilidade. Este se ocuparia dessas e outras questões associadas ao abastecimento e à segurança e soberania alimentar e nutricional do país. É evidente que isto encontra resistências e não apenas por parte do Ministério da Agricultura, mas de outros ministérios que têm importantes políticas em áreas diretamente associadas ao tema, como é o caso dos ministérios da Educação e da Saúde. Seja como for, o fato é que nada disso passa pela pauta do atual governo. Nada impede, contudo, que experiências similares sejam realizadas nos âmbitos estadual e municipal, tal qual ocorreu com as Secretarias de Desenvolvimento Rural quanto existia o Ministério do Desenvolvimento Agrário.
E por que não reeditar a experiência do MDA? Por duas razões principais. Primeiro, não há mais espaço no campo político para isso. Qualquer proposta neste sentido soará como projeto de um partido e terá forte resistência. Segundo, por que é preciso inovar. As políticas do MDA foram fundamentais e, muitas delas, devem continuar sendo incentivadas. Outras devem ser ajustadas, como é o caso do Pronaf. Mas a questão fundamental é que a volta do MDA ou qualquer coisa similar, apenas reforçaria o viés agrícola e produtivo das políticas de desenvolvimento rural. Já passou da hora de colocarmos a alimentação como eixo estruturante da articulação entre produção e consumo, campo e cidade.
Levar adiante tais propostas – e muitas outras que seguramente surgirão neste mesmo sentido – requer não apenas pressão e negociação política, mas, sobretudo, uma boa dose de coragem. Organizações e movimentos históricos da própria agricultura familiar, cada qual com suas pautas e bandeiras de lutas, teriam que redirecionar suas práticas e discursos para uma nova agenda e, ao mesmo tempo, apostar em novas coalizões políticas. Não nos parece, todavia, haver outro caminho se queremos efetivamente construir sistemas alimentares sustentáveis, saudáveis e justos.
(*) Professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
(**) Agradecemos os comentários, críticas e sugestões dos membros do Grupo de Estudos e Pesquisas em Agricultura, Alimentação e Desenvolvimento (GEPAD-UFRGS), bem como dos colegas Silvio Porto, Renato Maluf, Paulo Petersen e Caio França.
—