Já com saudades é que lembramos que nesse ano o São João teve milho livre de transgênicos direto da agricultura familiar. São diversos produtos derivados da conservação local das variedades crioulas. Vamos falar aqui de três casos, todos no Semiárido: a cooperativa Copirecê, na Bahia; o Movimento Camponês Popular, em Sergipe, e a parceria entre o Polo da Borborema e a AS-PTA, na Paraíba.
Essas organizações vêm oferecendo uma diversidade de produtos derivados do milho que cada vez mais representa um alívio para quem chega ao mercado e só encontra embalagens rotuladas com o T dos transgênicos. Dentre os produtos, temos o flocão de milho para cuscuz, creme de milho, xerém, munguzá, fubá, canjiquinha, mingau de milho verde e o mingau de multicereais.
Por trás de cada um desses produtos existe uma longa caminhada de luta. Zene Vieira, agrônoma responsável técnica da Copirecê e mestranda em Produção Vegetal no Semiárido pelo Instituto Federal Baiano, em Guanambi, conta que, no início, as sementes dos cooperados estavam contaminadas por transgênicos e que isso dificultava a comercialização. “Foi aí que percebemos a necessidade de descartar essas sementes e adquirir outras certificadas não transgênicas para repassar para os agricultores”, explica. A Cooperativa comprou sementes de agricultores que tinham suas variedades “limpas” e, além disso, estabeleceu parceria com a Embrapa para aquisição de variedades melhoradas não transgênicas.
Para garantir que nem o milho colhido, nem as sementes estejam contaminados, os testes para detecção de transgênicos são feitos em três momentos diferentes. “Fazemos o primeiro ainda em campo com o milho na espiga, depois no recebimento pela Cooperativa e, por último, já dentro do armazém, em lotes maiores, de 300 ou 500 sacos”, explica Zene. O teste de fita que detecta a presença de proteína transgênica é usado nas duas primeiras etapas e o PCR, que faz análise molecular, é feito por último”.
A Copirecê organizou também um banco de sementes, a partir do qual tem resgatado variedades consideradas perdidas na região. O banco empresta aos cooperados no sistema de um pra dois. Ou seja, quem pega um saco de sementes para plantio devolve dois após a colheita de forma que haja sempre sementes disponíveis para todos.
Phillipe Caetano, do Movimento Camponês Popular, o MCP, conta que essa produção sempre existiu entre os agricultores, porque o milho é base de muitos produtos na nossa alimentação e é largamente empregado também na alimentação animal. Alguns agricultores já utilizavam as sementes crioulas em suas produções e outros passaram a produzir a partir do incentivo do Movimento. “A gente tenta fazer com que a semente chegue nas mãos dos agricultores, e começamos esse trabalho de destinar a produção do milho tanto para o beneficiamento como para a comercialização da semente”, explica Phillipe, que integra o GT Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia.
As políticas públicas têm desempenhado papel importante na distribuição das sementes. Algumas prefeituras adquirem sementes produzidas pelos agricultores e as distribuem para o cultivo por outras famílias. Muitas vezes, o incentivo para os agricultores se dá a partir desse processo. Além disso, o MCP compra a produção por um preço 30% superior ao do mercado como forma de estimular as famílias a continuarem produzindo e multiplicando as variedades crioulas.
No caso da Paraíba, o trabalho construído em parceria com a ASA Paraíba, conta hoje com um Banco Mãe de Sementes, cuja estrutura é composta por uma unidade de beneficiamento de milho e uma cozinha escola. “A unidade de beneficiamento já está a pleno vapor”, comemora Emanoel Dias, assessor técnico da AS-PTA e integrante da Rede Sementes da ASA Paraíba. Segundo Emanoel, uma das preocupações atuais é que os derivados do milho, como o flocão, o xerém e o mungunzá, tenham preços acessíveis ao povo. Para tanto, a cooperativa EcoBorborema está fazendo levantamentos comparativos sobre custos de produção e preços praticados nos mercados da região.
As conclusões iniciais são animadoras e mostram que a unidade de beneficiamento do Banco Mãe é autofinanciável e economicamente viável. “Essa conquista é resultado de um longo trabalho e nossa intenção não é entrar no mercado para concorrer com as empresas de alimentos, mas para valorizar as experiências dos agricultores”, destaca Emanoel. Outro desafio atual é aumentar o volume de milho a ser processado, já que a região passa por anos seguidos de seca. Para tanto, AS-PTA e Polo da Borborema estão buscando parcerias com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras organizações para que utilizem a unidade do Banco Mãe para o beneficiamento da produção de suas regiões.
Em paralelo, o beneficiamento da produção e a chegada dos produtos livres de transgênicos aos mercados e feiras locais têm sido um fator de estímulo ao grupo de guardiões e guardiãs das sementes no território da Borborema, que já planeja aumentar a escala de suas produções de milho. A proposta é acrescentar um prêmio de até 30% ao valor de compra do produto livre de transgênicos. Os testes para detecção de transgênicos são feitos anualmente e os últimos resultados têm indicado a redução da contaminação.
Em Sergipe, a maior parte do cuscuz agroecológico é comercializada diretamente ao consumidor ou por meio de intermediários, lojas de produtos naturais e mercearias. Durante a pandemia a demanda pelo produto aumentou, tanto por parte do poder público, como de organizações parceiras do movimento agroecológico. O MCP conseguiu incluir o cuscuz nas cestas básicas do Programa Estadual de Aquisição de Alimentos (PAA) e realizou vendas de sementes para a ASA e para o Centro Sabiá, de Pernambuco. A Copierecê passou a atender mercados nas regiões sul e sudeste do país e também a partir do estabelecimento de parceria com o governo do estado da Bahia, no quadro do Projeto Bahia Produtiva. A ampliação desses mercados teve também rebatimentos positivos, no aumento do volume da produção do milho pelas famílias.
As experiências de processamento e comercialização têm contribuído para a conservação das variedades crioulas. Como toda a produção é submetida ao teste de transgenia, as organizações conseguem prevenir que sementes contaminadas sejam plantadas. Mas esse controle, por si só, não elimina os impactos dos transgênicos sobre as variedades crioulas. No caso da Paraíba, as famílias agricultoras fazem parte de uma rede de bancos de sementes comunitários, o que permite localizar e repor um lote de uma dada variedade contaminada. Além disso, o Banco Mãe guarda estoques de segurança de algumas variedades. A Copirecê também organiza seu banco de sementes e recorreu, além disso, a variedades produzidas pela Embrapa. O MCP tem buscado diversificar as variedades usadas pelos agricultores para compensar perdas que ocorreram pela contaminação. Para tanto, incentivam que um número crescente de agricultores assuma a multiplicação das variedades locais. “Se tem uma variedade crioula que só é produzida por 1 ou 2 agricultores, estamos tentando ampliar isso para 4 ou 6 para que a gente possa de fato ampliar a quantidade de variedades não contaminadas”, explica Phillipe.
Além do banco de sementes, a Copirecê incentiva a produção pelas famílias por meio da instalação de kits de irrigação, o apoio com equipamentos para preparo do solo, sacaria adequada, transporte e o fomento financeiro. “Conquistamos a certificação para processamento do milho orgânico, que é uma certificação participativa através da Rede Povos da Mata. E, recentemente, recebemos inspeção do Instituto Biodinâmico (IBD) no intuito de conquistar mais um selo, o GMO Free [livre de transgênicos]. Todas essas inspeções atestaram os métodos e procedimentos que adotamos para manter a integridade dos nossos produtos e mostrar que os agricultores familiares e as pequenas cooperativas também podem e devem ter produtos de qualidade”, destaca Zene.
“O flocão nas feiras é uma oportunidade de conversar com a sociedade, de falar sobre o trabalho da Agroecologia, da importância desse movimento e para reafirmar que com o trabalho com sementes, que sempre foi o nosso forte, a formação das famílias e o resgate da diversidade, agora estamos vendo que as sementes têm possibilitado gerar renda e segurança alimentar para os agricultores e agricultoras que produzem e para aqueles consumidores que vão à feira”, avalia Emanoel, da AS-PTA.
Phillipe, do MCP, reforça também o ponto de vista de que a colocação desses produtos no mercado abre novos horizontes de diálogo com a sociedade: “Isso acontece a partir da própria visibilização do que é possível, mostrando que o campesinato tem essa capacidade de se organizar, de produzir e de colocar o alimento de qualidade na mesa das pessoas.”