No formato atual, há 21 anos, o encontro reúne, todo o dia 6 de janeiro, um público cada vez maior, vindo de diversas regiões do Ceará e do Brasil. A última edição contou com 80 pessoas, realizando trocas de sementes e de experiências, ao som de muita música
Por Adriana Amâncio
Este ano de 2022, o Encontro de Guardadoras e Guardadores de Sementes e de Experiências de Chuva de Orós foi transmitido, ao vivo, pelo Youtube. A ideia é aproveitar a internet como ferramenta para reforçar que, mesmo diante do avanço tecnológico, a sabedoria popular continua sendo celebrada e preservada pelas famílias agricultoras, que mantêm a tradição de guardar e trocar sementes crioulas e realizar as experiências de chuva, que consistem em observar os sinais da natureza e prevê se o ano vai ser de inverno bom ou de estiagem.
Neste formato, já são 21 anos deste encontro que, todo dia 6 de janeiro, abriga dezenas de sábios e sábias senhores e senhoras rurais em uma mística que envolve troca de sementes e alimentos, a socialização do resultado das experiências da chuva, música, dança e teatro. “A gente junta duas dimensões: o homem e a mulher, que vê os sinais das chuvas, é aquele que planta e aí está ligado às sementes, sobretudo às sementes crioulas. A gente realiza sempre no dia 6 de janeiro, encerrando a tradição cristã e o ponto alto é a grande partilha comunitária das sementes”, explica o lavrador, poeta, cantor e criador do encontro Zé Vicente.
Como tudo começou – Os primeiros encontros, que reuniam em média apenas seis guardadores e guardadoras foram realizados perto do antigo açude de Orós, no Sítio Aroeiras, área rural do município de Orós, região do Semiárido cearense. Na época, o formato era diferente e envolvia uma celebração da palavra, organizada pelas Comunidades Eclesiais de Base (Cebs), que contava com a presença de pessoas da comunidade e com as trocas de saberes entre mulheres que cultivavam espécies medicinais e realizavam curas. Em seguida, foi construída a casa mãe, um espaço dedicado exclusivamente ao evento, localizado em outro ponto do sítio.
Antes do encontro, os guardadores (as) realizam as suas experiências de chuva, individualmente em suas comunidades, e anotam os resultados. No encontro, há um momento específico para socialização dos resultados, frutos de práticas diversas. No encontro deste ano, algo surpreendente aconteceu: todas as oitenta experiências realizadas apontaram que o inverno seria bom. “Uma coisa muito marcante em um encontro desse é a diversidade. É observar os sinais da natureza e cultivar a resistência sertaneja. Pela primeira vez, este ano, todos disseram que vai ser um tempo de grandes chuvas. Isso nunca tinha acontecido”, revela Seu Zé.
Tradição – Maria de Fátima Lima, de 67 anos, é uma das poucas e mais antigas guardadoras de experiências de chuva da região. Ela participa do encontro, há três anos. Moradora do Sítio São Romão, na área rural de Orós, Dona Fátima realiza, desde os anos 1980, a experiência de Santa Luzia, tradição herdada do pai e da mãe. A prática consiste em colocar, na madrugada do dia 13 de dezembro, seis pedras de sal no terreiro da casa.
Cada uma dessas pedras corresponde a um mês do inverno, que no Semiárido cearense, segundo os guardadores, vai de janeiro a junho. No dia seguinte, observa-se as pedras que se dissolveram, num sinal de ocorrência de chuva naquele mês específico. “A primeira vez que eu fiz a experiência foi na época de 1980, deu uma chuva tão grande, que encheu um tambor de 200 litros, no esgoto a água não teve passagem e entrou em casa. Pronto, aí todo mundo ficou acreditando e me procurava. De lá pra cá, todos os anos eu faço”, relembra Dona Fátima.
Junto com a observação dos sinais da natureza, Dona Fátima também aprendeu a guardar sementes com o seu pai e a sua mãe. Quase sempre, ela leva aos encontros sementes de milho, feijão, algodão e cabaça. Ela reconhece que são poucas mulheres que realizam as experiências com as chuvas e participam dos encontros, por essa razão, passa uma mensagem de incentivo. “Elas [as mulheres] procurem também fazer o que eu faço, olhar, observar a natureza. Porque é muito importante para a comunidade saber sobre as chuvas aqui no Semiárido”, incentiva a agricultora.
Legado – Com 33 anos a menos do que Dona Fátima, Bertolino Alcântara Matos, de 35 anos, mais conhecido como Beto, morador do Distrito José de Alencar, iniciou o trabalho com as experiências de chuvas ainda jovem, aos 16 anos, e estreou no Encontro de Guardadores este ano. Ele representa a geração mais recente da família que realiza a prática, iniciada pelo Seu Bisavô, com quem ele ainda teve tempo de conviver. “Uma vez, conversando com o meu bisavô sobre essas experiências, eu me peguei pensando: ‘será que eu vou ocupar essa função, colocando pra frente essa tradição?’. Eu me sinto muito orgulhoso”, afirma o jovem agricultor.
Dentre as experiências de chuva desenvolvidas por Beto, as mais comuns são a experiência do Pé de Mandacaru perto do curral, que se florir, é sinal de chuva. A germinação das sementes na chuva da virada do ano. Se germinar cedo, é sinal de chuva, porém, se mesmo com as chuvas deste dia, as sementes não germinarem, o tempo é de seca. Consciente da missão que lhe foi dada, ele lamenta a perda das tradições. “Eu fico triste de ver que o homem está se distanciando da sua origem, perdendo a oportunidade de ver o milagre da vida”, lamenta.
Beto é técnico agrícola com habilitação em Zootecnia. Durante o curso, conheceu as práticas da agroecologia e agrofloresta e resolveu retornar à comunidade rural para implementar uma área de transição, que foi batizada de Professora, por ser considerada o ponto de partida de um processo de aprendizado. No local, plantaram milho, feijão, combinado com Angico, Aroeira, Sabiá e Catingueira. Ao lado do pai, deu início a um banco de sementes familiar para armazenar as espécies crioulas. Hoje, o espaço possui, em média, 35 espécies, entre elas o milho Tardão e o feijão Costela de Vaca.
Benefícios à comunidade – O resultado das experiências de chuvas faz toda a diferença na vida do agricultor José Egenildo de Matos, de 57 anos, morador da comunidade Serraria, no município de Cedro, semiárido cearense. Quando criança, o agricultor via o pai esperar os resultados das experiências de chuva para iniciar a plantação. Anos depois, quando assumiu o plantio, o agricultor seguiu a mesma tradição. “Eu converso com as pessoas, a cada ano, para saber o resultado das experiências e plantar. Todos os anos dá certo”, explica seu José.