Hoje, a soja dos brasileiros contém 50 vezes mais veneno do que em 1998. O aumento expressivo do uso de agrotóxicos é a indicação clara de que estes últimos e os transgênicos fazem parte de um mesmo modelo, onde a dominação do mercado de sementes e insumos está nas mãos de um pequeno grupo de grandes corporações

por Andrea Lazzarini Salazar

Publicado na revista Le Monde Diplomatique Brasil, edição de agosto de 2010.

A introdução de espécies geneticamente modificadas no Brasil tem como traço marcante a chancela oficial. Começando no governo Fernando Henrique Cardoso, ganhou vigor durante a gestão Lula com a legalização da soja contrabandeada, atingindo seu ápice com a aprovação do milho transgênico da Bayer, da Monsanto e da Syngenta – medida tomada contra o entendimento técnico da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). No lugar de definir estruturas e procedimentos de biossegurança, o Estado vem agindo no sentido de autorizar liberações sem a adequada análise de riscos ambientais e à saúde, desconsiderando impactos socioeconômicos, recusando o debate com a sociedade e evitando a transparência de suas ações.

Da aprovação da primeira Lei de Biossegurança, em 1995, até junho de 2010, sob a vigência de nova Lei, foram autorizadas 21 plantas transgênicas: 11 variedades de milho, 4 de soja e 6 de algodão, sendo 80% da Monsanto, Syngenta e Bayer, e 90,4% foram aprovadas entre 2008 e 2010.

Fica difícil compreender 19 liberações comerciais em tão curto espaço de tempo, quando mais e mais pesquisas revelam as mentiras que foram contadas para convencer agricultores e governos dos benefícios dos transgênicos. Mas parece que quanto mais evidências contumazes dos problemas associados ao uso de transgênicos surgem, mais trabalha o governo para garantir, a qualquer custo, as autorizações.

Aos fatos!

Os transgênicos aumentam o uso de agrotóxicos, ao contrário do que alegavam as empresas de biotecnologia, e, por isso (e por outras razões também), são prejudiciais ao meio ambiente e à saúde. A soja transgênica (Roundup Ready) é resistente ao herbicida Roundup, também fabricado pela Monsanto e cuja base é o glifosato1. Depois que foi autorizada no Brasil, o crescimento das vendas de glifosato foi significativo, saltando de 60 mil para mais de 110 mil toneladas do ingrediente ativo, entre 2004 e 2007, segundo a Anvisa, enquanto, no mesmo período, a área plantada de soja diminuiu cerca de 8%, de acordo com a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). O aumento do uso de glifosato também já está comprovado nos Estados Unidos.

Hoje, a soja dos brasileiros contém 50 vezes mais veneno (glifosato) do que em 1998. Naquele ano, às vésperas da pretendida liberação da soja transgênica no Brasil, só não ocorrida por decisão judicial, a Anvisa permitiu que a soja que comemos tivesse 10 vezes mais resíduo de glifosato, passando de 0,2 ppm (partes por milhão) para 2,0 ppm. Em 2004, após a autorização, virou “festa”: o órgão ampliou o limite para 10 ppm (ou seja, 50 vezes a “dose” inicial).

Além disso, outros venenos mais tóxicos são cada vez mais necessários nas plantações de soja, na medida em que as ervas daninhas já não se curvam mais ao glifosato; são estes o 2,4-D (que dá origem às dioxinas, conhecido grupo de compostos carcinogênicos e ingrediente do agente laranja usado na Guerra do Vietnã), o paraquat (associado ao aumento dos riscos de desenvolvimento de mal de Parkinson) e a atrazina (proibida na Europa). A CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) já está até mesmo analisando um pedido de liberação de soja transgênica, da empresa Dow, resistente ao 2,4-D.

Um parêntese sobre o glifosato: em 2008, a mesma Anvisa, em atitude que merece aplausos, decidiu submeter diversos princípios ativos (agrotóxicos) a reavaliação, após extensa pesquisa que revelou inúmeros impactos à saúde e/ou proibição em diversos países. O glifosato faz parte desta relação.

Contudo, o atual presidente da CTNBio, Edilson Paiva, doutor em biologia molecular e, à época, já membro da Comissão, fez uma defesa pública do princípio ativo, afirmando que “os humanos poderiam até beber [glifosato] e não morrer, porque não têm a via metabólica das plantas”.2

Mercado concentrado

O aumento expressivo do uso de agrotóxicos é a indicação clara de que estes últimos e os transgênicos fazem parte de um mesmo modelo, em que a dominação do mercado de sementes e insumos está nas mãos de um pequeno grupo de grandes corporações.

A dependência dos agricultores já é sentida. Parte deles, que, inicialmente, apoiava de maneira incondicional o uso de transgênicos, não mais esconde suas críticas e, agora, questiona a cobrança de royalties indevidos3 e preços extorsivos de insumos.

Os agricultores também têm enfrentado dificuldades para conseguir sementes convencionais, já que o mercado fica concentrado na mão de poucas empresas – Monsanto, Dupont, Syngenta e Bayer. Relatos dão conta que a oferta de grãos vem casada: para conseguir 15% de soja convencional é preciso também comprar 85% de transgênica. No caso do milho, hoje, em cada quatro novas sementes lançadas no mercado, três são transgênicas.

Para a Abrange (Associação Brasileira de Produtores de Grãos Não Geneticamente Modificados), esse cenário faz com o que o Brasil perca a vantagem comercial que tem diante de seus principais concorrentes no mercado da soja (EUA e Argentina): justamente oferecer grãos não geneticamente modificados. Reunindo mais de 30 associados, entre os quais grandes produtores, como a Amaggi, Brejeiro, Caramuru e Imcopa, a Abrange acredita que “o mercado de grãos não transgênicos seja uma realidade no Brasil e no exterior, pois vem gerando ganhos expressivos tanto para os agricultores quanto para o próprio país, e [portanto] deve ser preservado e cativado”.

Liberações às cegas

Os fatos elencados acima sugerem que o governo deveria reavaliar sua posição, submetendo a análise e a debate o que representa este modelo de agricultura, ponderando perdas, benefícios e alternativas existentes. Mas, diametralmente oposto às suas posições históricas, Lula radicalizou na defesa dos OGMs.

Após a liberação da soja da Monsanto por Medida Provisória (MP), duas vezes em 2003, quando assumiu a presidência, Lula ainda reduziu o quórum para facilitar as liberações comerciais: antes, a autorização para comercialização e consumo dependia do voto favorável de dois terços dos 27 membros da CTNBio; depois da MP 327, apenas 14 votos favoráveis passaram a ser suficientes. A partir de então, os apontamentos fundamentados de cientistas, relacionados à precariedade da análise de risco, são ignorados solenemente e as aprovações acontecem a despeito dos votos contrários (minoritários) dos ministérios da Saúde e do Meio Ambiente, além dos outros especialistas e representantes da sociedade civil.

A lógica que guia as decisões é a da biotecnologia, e não a da biossegurança. As plantas já autorizadas foram “avaliadas” com base no princípio da equivalência substancial, muito criticado no meio científico por restringir sobremaneira o escopo da avaliação. De acordo com este princípio, já apelidado de pseudocientífico, a soja transgênica Roundup Ready é equivalente à soja natural, e assim por diante.

A análise dos processos é precária. A Comissão vale-se tão somente dos estudos encaminhados (e muitas vezes produzidos) pelas próprias empresas, não publicados nem submetidos à peer review4. Dentre os transgênicos autorizados, vários contêm genes de resistência a antibiótico, cujo uso não é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e por outros conselhos científicos, a exemplo da Comissão Europeia, como o Conselho Internacional para a Ciência (Paris), a Royal Society (Londres), o Conselho Belga de Biossegurança (Bruxelas), a Academia Nacional de Ciências (Washington DC) e o Conselho de Bioética de Nuffield (Londres). Mas isso é irrelevante para a CTNBio. Ademais, as novas evidências que surgem e são publicadas nunca são suficientes para sensibilizar o colegiado a reavaliar suas decisões.

A atuação opaca é outra marca do colegiado. Foi preciso a Justiça intervir para que as reuniões oficiais ocorressem a portas abertas e audiências públicas passassem a existir. E a sombra que recai sobre os processos (públicos!) para os quais a Comissão nega acesso5 vai deixar de existir, por mais uma determinação judicial dada em 26 de julho deste ano.

Os conflitos de interesse são outro assunto delicado. Os membros só assinaram um tipo de “declaração de conduta” depois de uma recomendação formal do Ministério Público Federal. A opinião manifestada publicamente por uma cientista, ex-integrante da Comissão, revela um pouco mais e melhor o que é a CTNBio. Segundo Lia Giraldo da Silva Augusto, “a CTNBio está constituída por pessoas com título de doutorado, a maioria especialistas em biotecnologia e interessados diretamente no seu desenvolvimento. Há poucos especialistas em biossegurança, capazes de avaliar riscos para a saúde e para o meio ambiente”. E prossegue: “O que vemos na prática cotidiana da CTNBio são votos préconcebidos e uma série de artimanhas obscurantistas no sentido de considerar as questões de biossegurança como dificuldades ao avanço da biotecnologia. A razão colocada em jogo na CTNBio é a racionalidade do mercado, que está protegida por uma racionalidade científica da certeza cartesiana, em que a fragmentação do conhecimento, dominado por diversos técnicos com título de doutor, impede a priorização da biossegurança e a perspectiva da tecnologia em favor da qualidade da vida, da saúde e do meio ambiente”.

A contaminação genética, que é notoriamente um dos aspectos mais debatidos nos meios acadêmicos, para a CTNBio nem sequer é uma questão de biossegurança. Lá prevalece o entendimento de que, se a planta foi por eles considerada segura, não há problema que ocorra a contaminação, que é meramente uma questão de mercado. Às favas a biodiversidade e a preservação de sementes crioulas, o direito de consumidores e agricultores a alimentos livres de transgênicos. Tanto é, que as primeiras liberações de milho vieram sem nenhuma medida para evitar a contaminação. Mas a Justiça acatou pedido das ONGs (ANPA, AS-PTA, Idec e Terra de Direitos) e suspendeu os efeitos das liberações até que fossem criadas regras de coexistência. À determinação, a CTNBio respondeu às pressas com uma regra pífia de “isolamento do milho”.

Com as novas sementes disponíveis para os agricultores, o estado do Paraná, maior produtor do cereal, colocou seus técnicos em campo para testar a eficácia da norma. O estudo inédito comprovou, por dois métodos diferentes, que a contaminação ocorre mesmo quando a regra de isolamento é cumprida – ou seja, ela não serve. CTNBio e Ministério da Agricultura responderam dizendo que o estudo não valia, entre outras razões, porque o então governador Roberto Requião é sabidamente contrário aos transgênicos(!).

Não satisfeitos, Walter Colli, Edilson Paiva e outros três integrantes da Comissão divulgaram texto, com logomarca do Ministério da Ciência e Tecnologia, afirmando que “seria uma temeridade para o país, no século XXI, e com a agricultura intensiva como base importante do PIB, que a diversidade de qualquer planta de grande interesse econômico estivesse na dependência de agricultores que não têm a mais vaga ideia de genética”; e que “o plantio de grãos no lugar de sementes pode ser antigo, como a coivara ou o hábito de defecar nos rios e coleções de águas, mas nenhum deles é adequado nem compatível com o convívio entre cidadãos de uma sociedade moderna”, referindo-se à produção e uso próprio de sementes crioulas pelos agricultores familiares. Lembremos que, para infelicidade de alguns, a atividade é de tamanha relevância que consta de dois acordos internacionais dos quais o Brasil é parte: o de Recursos Genéticos para a Alimentação e a Agricultura, da FAO, e a Convenção sobre Diversidade Biológica, da ONU.

Merece lembrança ainda a coroação do ex-presidente da CTNBio, Walter Colli, médico que encerrou o seu mandato em 2009, propondo acabar com o monitoramento dos impactos dos transgênicos na saúde após sua introdução no mercado. Em sua opinião, o monitoramento é “lixo” e que “fez muito bem” a indústria alimentícia de não se submeter à regra e reclamar.6 A medida está prevista na lei, na Convenção de Diversidade Biológica e no Protocolo de Cartagena, e tem por objetivo acompanhar os impactos não avaliados e adotar as medidas necessárias.

Colli deu lugar a Edilson Paiva, que, alheio às fortes críticas públicas geradas pela iniciativa, criou um grupo para, possivelmente, pôr fim ao monitoramento. Mais alheio que ele, só mesmo o Conselho de Ministros, que ainda em 2008 aprovara orientação para que fossem realizados “estudos de seguimento de médio e longo prazo dos eventuais efeitos no meio ambiente e na saúde humana, dos OGM e seus derivados”, mas silenciou diante da iniciativa lamentável da CTNBio.

A ausência do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), composto por 11 ministros e presidido até há pouco tempo por Dilma Rousseff, revela astúcia. Deixa as liberações correrem soltas ao jogar para a CTNBio todas as atribuições (inclusive as que não lhe cabem) e o foco das atenções, esquivando-se do seu papel.

E é esta a Comissão que decide o destino dos transgênicos no Brasil. É esta Comissão que agora tem em suas mãos a decisão sobre o arroz transgênico da Bayer – que não é plantado em nenhum país e cujo agrotóxico usado (glufosinato de amônio) está com os dias contados para ser banido na Europa.

Informação desprezada

Uma última nota sobre a rotulagem de transgênicos. Para o Idec, que acompanha este assunto desde 1997 e tem como uma de suas prioridades a luta pelo direito à informação, o descumprimento da legislação que obriga a rotulagem de transgênicos por parte da indústria alimentícia, com a conivência do governo, é inaceitável – além de crime diante do Código de Defesa do Consumidor.

Paralelamente, o período de maior número de liberações e plantio de transgênicos no Brasil marca também o de iniciativas legislativas para impedir o consumidor de saber o que consome, não obstante as pesquisas de opinião pública apontarem que a esmagadora maioria dos cidadãos quer saber se o alimento é ou não transgênico.

Em manifesto desprezo à vontade dos consumidores, os deputados Luiz Carlos Heinze (PP/RS), Cândido Vacarezza (PT/SP) e a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), por meio dos Projetos de Lei 4148/98 e 5575/09 e do Projeto de Decreto Legislativo 90/2007, respectivamente, puxam a frente “anti-informação”. As propostas buscam restringir a rotulagem para os alimentos em que for detectável a presença de OGM, omitindo a informação dos óleos e muitos outros gêneros alimentícios; excluir o símbolo “T”, que hoje identifica tais produtos, e a informação dos alimentos de origem animal; além de permitir o uso de sementes transgênicas estéreis, do que ainda cuidou Vaccareza.

Neste cenário, não dá para acreditar no presidente da CTNBio, que diz que “não existe pressão econômica”.7 A introdução de transgênicos no Brasil, como no seu “berço”, os EUA, e em outros países, é mais uma demonstração do poder das grandes corporações. Aqui, os fatos, que incluem mudança de lei, edição de medidas provisórias e outras decisões oficiais, mostram que o poder não escolhe mesmo partido: de 1995, quando a Lei de Biossegurança foi aprovada no governo FHC, para 2010, no final do governo Lula, a cavalgada rumo à liberação geral de transgênicos só tem crescido. E não adianta achar que a culpa é só da CTNBio.

::

Andrea Lazzarini Salazar é advogada e consultora jurídica do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor); acompanha o assunto desde 1998.

::

1 O glifosato é um herbicida não seletivo (mata qualquer tipo de planta) desenvolvido para matar ervas, principalmente perenes. É o ingrediente principal do Roundup, herbicida da Monsanto. Muitas plantas culturais geneticamente modificadas são simplesmente modificações genéticas para resistir ao glifosato. A Monsanto vende sementes dessas plantas com o marca RR (Roundup Ready).

2 Jornal Valor Econômico, 23/04/07.

3 A forma de cobrança de royalties sobre a soja da Monsanto tem sido duramente criticada. A cobrança não é feita apenas no momento da compra da semente. Este agricultor ainda deverá pagar 2% sobre o excedente da produção estimada, se ocorrer esta situação. Além desse agricultor que fez a opção pela soja transgênica, os que cultivarem soja convencional ou orgânica também estão sujeitos a pagar royalties e multa, se sua produção tiver sido contaminada. Ao entregar sua produção para venda, o agricultor deve informar se usou ou não soja transgênica. Se não tiver utilizado, mas o teste de detecção acusar a presença de soja transgênica, o agricultor fica obrigado a pagar uma multa, além dos 2% sobre o valor da produção.

4 Revisão por pares, em que a pesquisa é submetida a avaliadores independentes capacitados.

5 Posição oficial, de acordo com Parecer Conjur/MCT 054/2008.

6 Folha de S.Paulo, 09/12/09.

7 Cidades e Soluções, Globonews, 16/06/10.