por IHU Unisinos, 05/10/2011

Apesar dos apontamentos de irregularidades e evidências de que os estudos do feijão transgênico“são falhos”, a comercialização do produto foi liberada no Brasil pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio. Na avaliação do agrônomo José Maria Gusman Ferraz, quando se trata da liberação de um produto transgênico que não possui autorização para ser comercializado em nenhum lugar do mundo, há “necessidade de realizar estudos mais rigorosos”.

Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, Ferraz, que também é membro da CTNBio, diz que nos testes realizados o feijão transgênico 5.1 da Embrapa não apresentou comportamento semelhante ao feijão convencional no que se refere à “quantidade de nutrientes no feijão, no efeito sobre órgãos internos, como rins e fígado, e nas vilosidades (área de absorção) do intestino delgado e grosso e na produção de várias substâncias presentes no grão”.

Além das possíveis implicações para a saúde humana, a liberação do feijão transgênico poderá prejudicar a agricultura familiar, maior produtora do alimento. “Há tendência de cobrança de royalties para o uso da semente, aliado à possibilidade de contaminação de variedades crioulas de diversas formas, ou seja, no campo ou nas trocas de sementes por meio das práticas rotineiras entre agricultores familiares. A liberação do feijão transgênico colocará em risco também a soberania alimentar, uma vez que compromete a posse da semente pelos seus verdadeiros detentores”.

José Maria Gusman Ferraz é mestre em Agronomia pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Ecologia pela Universidade Estadual de Campinas  Unicamp. Cursou pós-doutorado em Agroecologia pela Universidade de Córdoba – UCO, Espanha. Atualmente é professor do curso de mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural da UFSCar e professor convidado da Universidade Estadual de Campinas.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor recebeu a notícia da liberação do feijão transgênico no Brasil, durante reunião da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio?

José Maria Gusman Ferraz – Recebi com constrangimento e preocupação, visto que faço parte da CTNBio. Mesmo após serem apontadas várias irregularidades no processo de aprovação e nas evidências de que os estudos apresentados eram falhos e mereciam maior aprofundamento, quando se abriu para a votação, a maioria dos cientistas presentes desconsiderou estas evidências e votou pela aprovação.

IHU On-Line – O senhor apontou diversas falhas no processo do feijão transgênico e violações ao princípio da precaução e à legislação de biossegurança. Em que consiste seu parecer e por que, em sua opinião, a liberação do feijão transgênico exigia estudos mais detalhados?

José Maria Gusman Ferraz – Deixando de lado os princípios e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e que não foram considerados, como o Princípio da Precaução, Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB, Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura da FAO – TIRFAA, e o Global Plan of Action – GPA, o feijão transgênico 5.1 da Embrapadeveria apresentar comportamento semelhante quando comparado com a planta que lhe deu origem (mesmo material, mas sem a inserção do transgene). Isso não ocorreu em várias situações, como na quantidade de nutrientes no feijão, no efeito sobre órgãos internos, como rins e fígado, e nas vilosidades (área de absorção) do intestino delgado e grosso e na produção de várias substâncias presentes no grão.

IHU On-Line – Por quantos anos foram realizados estudos com o feijão transgênico desenvolvido pela Embrapa?

José Maria Gusman Ferraz – Não foram anos, mas apenas dias. A avaliação de efeitos sobre os animais alimentados com o feijão foi feita em apenas com 35 dias. Em poucos dias é possível avaliar possíveis efeitos sobre a saúde da população? Para a avaliação agronômica, que tem uma correlação direta com a produtividade e com os custos, foram apresentados estudos de dois anos em três localidades.

IHU On-Line – Quanto tempo de estudo é suficiente para liberar ou não um alimento transgênico?

José Maria Gusman Ferraz – Quando se trata de um evento novo como esse, que não existe liberação comercial em nenhum lugar no mundo, as próprias regras da CTNBio (Resolução n.5) apontam para a necessidade de estudos mais rigorosos. Entretanto, não foram efetuados estudos de várias gerações dos organismos testes, e tampouco avaliações sobre animais em gestação, para verificar as implicações no feto. O tempo de observação foi muito curto, de 35 dias, e foram usados apenas três animais para avaliar os efeitos na saúde (alterações de órgãos e fisiologia). Nesta reduzida amostragem foram observadas alterações, como aumento do fígado, diminuição dos rins.

Essas informações são mais do que suficientes para evidenciar a necessidade de aprofundamento dos estudos antes de uma liberação comercial. Principalmente, levando em conta que o brasileiro come feijão durante a vida toda e não durante 35 dias de sua existência.

IHU On-Line – É possível saber qual é composição química do feijão transgênico?

José Maria Gusman Ferraz – Apenas é possível comparar quais substâncias presentes no feijão convencional (não transgênico) são diferentes no feijão transgênico Embrapa 5.1. E nessa avaliação foram observadas diferenças estatisticamente significativas no grão do feijão quanto ao teor de cisteína (aminoácido), extrato etéreo (gordura) e vitamina  B2. Nas folhas, percebeu-se uma redução no teor de proteína.

Essas variações não deveriam ocorrer quando as duas plantas estivessem sob a mesma condição de cultivo. Mais um fato que mereceria investigação detalhada antes da liberação comercial.

IHU On-Line – Nos últimos anos, a CTNBio tem demonstrado uma posição favorável aos alimentos transgênicos. Por quê?

José Maria Gusman Ferraz – Essa tendência não é recente. Desde sua composição, a CTNBioapresenta tal tendência, a qual ficou mais acentuada com a modificação do quórum para aprovação quando passou de maioria absoluta para maioria simples, facilitando a votação sem maiores discussões.

Existe também uma clara política governamental de ampliar a produção de commodities no país a qualquer custo e que está atrelada à mesma lógica de alteração do Código Florestal. Não há preocupação com as questões ambientais e sociais decorrentes deste modelo, como se algum país no mundo tivesse alcançado um desenvolvimento com a produção de commodities.

Se não nos movimentarmos, em breve teremos a liberação do gene terminator (exterminador), que torna a semente estéril, não permitindo sua reutilização, proibido no mundo todo. No Brasil, o tema é apresentado e discutido em dois projetos propostos pelo deputado Vacarezza, do PT, e pela senadora Katia Abreu, do DEM.

IHU On-Line – Os pesquisadores favoráveis à transgenia dizem que em 2014 o Brasil
terá o primeiro plantio de feijão livre de um vírus que provoca a perda de 90 a 280 mil toneladas do alimento por ano. Como vê esse argumento?

José Maria Gusman Ferraz – Se a Embrapa não reconsiderar a liberação, isso vai ocorrer mesmo. Mas vejo como um argumento tendencioso para justificar a aprovação apressada do feijão transgênico e sem embasamento científico seguro quanto à saúde da população.

O controle deveria estar centrado no manejo da cultura e no controle do inseto vetor; esta prática é possível. Basta verificar o boletim relatando o dia de campo da própria Embrapa divulgado em 17-01-2011, onde em um cultivo orgânico sem o uso de agrotóxicos a incidência da virose foi imperceptível e com uma produtividade de 2,4 t/ha. Esse plantio, no mesmo local, se repete há 8 anos consecutivos. Portanto, o manejo adequado é possível e é viável segundo pesquisas da própriaEmbrapa. A pressa na liberação como um fator “socioeconômico” não se justifica.  Mas sem o transgênico não se pode cobrar “royalties” da tecnologia.

IHU On-Line – O que tende a mudar no cultivo do feijão e na produção agrícola a partir da aprovação do feijão transgênico? Acredita na possibilidade de se cobrar royalties por essa nova variedade?

José Maria Gusman Ferraz – Seguramente a tendência é de cobrança de royalties, o que vai encarecer o custo da semente. Notadamente, a Embrapa vai estabelecer uma política de parcerias com empresas que atuam no mercado de Organismos Geneticamente Modificados  OGMs e de agrotóxicos.

A possibilidade de cruzar esse material transgênico com matérias das empresas que dominam o comércio de sementes no mundo está aberta e não necessita passar por novas avaliações pelaCTNBio, pois essa comissão considera que, após a liberação comercial, o produto é igualado a um material convencional e seu cruzamento nos moldes tradicionais não implica em risco. Portanto, a “porteira” está aberta.

IHU On-Line – Quais as implicações da transgenia para a agricultura familiar?

José Maria Gusman Ferraz – Nesse caso, o reflexo na agricultura familiar (maior produtora de feijão) é grande, pois há uma tendência de cobrança de royalties para o uso da semente, aliado à possibilidade de contaminação de variedades crioulas de diversas formas, ou seja, no campo ou nas trocas de sementes por meio das práticas rotineiras entre agricultores familiares. A liberação do feijão transgênico colocará em risco também a soberania alimentar, uma vez que compromete a posse da semente pelos seus verdadeiros detentores.

Essas preocupações já foram levantadas em audiência pública, mas que não receberam a devida atenção. Aliás, cabe uma denúncia de que propositadamente alguns governos estaduais, como os do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, estão incluindo nos programas chamados de “troca-troca“ sementes  transgênicas com uma clara intenção de disseminar estes materiais transgênicos entre os agricultores familiares.

IHU On-Line – O feijão é um dos alimentos mais consumidos pelos brasileiros. Pode-se dizer que com a liberação do feijão transgênico há uma vitória do setor?

José Maria Gusman Ferraz – Eu colocaria de forma inversa: existe uma perda de confiabilidade na Embrapa e na sua insistência de aprovar a liberação do feijão transgênico sem observar critérios científicos básicos. Isso pode afetar a imagem da instituição, que é tão respeitada no país e no exterior.

Existe uma apreensão de como o organismo das verdadeiras cobaias (já que foram usadas apenas três no estudo) e de como a população brasileira, que ingere em média 170 g de feijão por dia, irão reagir.
Portanto, considero isso uma derrota do Princípio da Precaução e dos preceitos científicos básicos que devem constar em um estudo de segurança alimentar.

IHU On-Line – Como será feita a comercialização do produto? O consumidor saberá se está consumindo feijão transgênico?

José Maria Gusman Ferraz – Desde 2002, existe uma legislação que obriga a rotulagem indicando quais são os alimentos transgênicos. Na prática, poucas empresas, num flagrante desrespeito à legislação, divulgam a informação em suas embalagens.

Quando o fazem, o consumidor não tem a mínima ideia do que significa aquele triângulo amarelo com a letra T em cor preta. Algumas empresas, ainda de forma capciosa, colocam abaixo do símbolo a palavra APROVADO, como se isso fosse uma vantagem para o consumidor.

Imaginem no interior, onde é comum a venda de feijão a granel. O consumidor não terá a mínima possibilidade de escolher o que quer ou o que não quer comer.

IHU On-Line – O que a liberação de mais um alimento transgênico demonstra sobre a postura brasileira em relação à segurança alimentar e à opção pela transgenia?

José Maria Gusman Ferraz – Demonstra que, embora nesse caso não associado a um agrotóxico (por enquanto), de modo geral o lobby das grandes corporações está ganhando sobre o direito do agricultor de ter sua semente e mantê-la sem contaminação de transgênicos. Demonstra também que o direito de escolha do consumidor está sendo desrespeitado por não ter opção de escolha, quer seja pela contaminação ou pela não observância da rotulagem de forma correta.

Demonstra um total desrespeito com a soberania e a segurança alimentar, com as sementes que cada vez mais vão existir no mercado e serão determinadas por poucas empresas, as quais também são responsáveis pela produção de agrotóxicos e obrigam os agricultores a utilizarem esses produtos em seus cultivos.

Demonstra também que o Brasil passou, com a presença maciça dos cultivos transgênicos de soja, milho e algodão, a ser o primeiro em uso de agrotóxicos. Com as liberações de transgênicos que estão por vir, com a vinculação de transgênicos e agrotóxicos mais perigosos, haverá uma piora nos casos de contaminação.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

José Maria Gusman Ferraz – Gostaria de salientar um fato que ocorreu na Europa e nos EUA e se repete no Brasil em relação aos pesquisadores que ousam contestar pesquisas feitas pelas empresas. Eles são ridicularizados como obscurantistas e suas idoneidades científicas e pessoais são postas em dúvida, numa clara tentativa de intimidação e de tentar calar vozes discordantes. Isso vem ocorrendo de forma cada vez mais acentuada no Brasil e recrudesceu no caso da liberação do feijão transgênico da Embrapa.

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