Reunião de comissão que marcou liberação da primeira variedade geneticamente modificada foi guiada por louvações ao papel da estatal Embrapa e pouca análise científica
Por: João Peres, Rede Brasil Atual
Ingrediente essencial na dieta do brasileiro, feijão também terá variedade transgênica, liberada apressadamente
(Foto: Danilo Verpa/Folhapress)
São Paulo – “O povo brasileiro agradece”. Foi desta maneira que o presidente da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), Edilson Paiva, encerrou a reunião que determinou a liberação da primeira variedade de feijão transgênico, na quinta-feira (15). Se os cálculos da Embrapa, estatal vinculada ao Ministério da Agricultura, estiverem certos, dentro de três anos os pratos dos brasileiros começam a receber feijões geneticamente modificados.
A CTNBio, uma pequena comissão subordinada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, é menos conhecida do que deveria. Dentro de um auditório, quase sempre pouco povoado, pesquisadores definem quais transgênicos chegarão ao mercado. Até esta semana, soja, milho e algodão tinham variedades autorizadas. Agora, o feijão, integrante do principal dueto gastronômico brasileiro, ao lado do arroz, deve ganhar sua versão alterada geneticamente por conta de um turbulento processo.
Desde que romperam as fronteiras dos Estados Unidos para ganhar o mundo, em especial na década de 1990, os organismos geneticamente modificados são fruto de polêmica. As empresas de biotecnologia indicavam como vantagens o ganho de produtividade e o uso menor de agrotóxicos, hipóteses que fizeram água nos últimos anos. Em paralelo, há dúvidas quanto à possibilidade de que desencadeiem novas e velhas doenças. Um dos possíveis desdobramentos do consumo de alimentos alterados geneticamente é de que se acelere a produção de algumas células, acarretando em aumento dos casos de câncer.
Quando 22 pesquisadores brasileiros se reuniram na CTNBio na quinta, não tomavam uma decisão qualquer. O aval que pode mexer com a segurança alimentar de 192 milhões de brasileiros deveria ser alvo de uma rigorosa análise de dados. Para os presentes ao debate, no entanto, não foi. “Foi muito decepcionante. Realmente eu esperava um comportamento científico, e não uma postura ufanista de liberar porque quer liberar”, confessa José Maria Gusman Ferraz, que integra a comissão na condição de especialista em meio ambiente. “Não estamos falando de um assunto qualquer. São duzentos gramas ao dia para cada brasileiro. E durante uma vida toda.”
Ele se queixa dos quinze outros conselheiros que votaram a favor do feijão transgênico desenvolvido pela Embrapa. Além dele, outros quatro integrantes da comissão apresentaram pedidos de diligência, o que significa, em português claro, que não se consideravam em condições de votar. Nem a favor, nem contra. “Não me sentiria seguro em comprar este produto”, avisa Leonardo Melgarejo, representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CNTBio. “O que houve é uma desconsideração das opiniões que ponderam que seria interessante tomar uma decisão mais bem sustentada.”
A ciência de lado
A Embrapa afirma que os estudos com sua variedade resistente ao vírus mosaico dourado começaram em 2010, e no mesmo ano já foi apresentada à comissão o pedido de liberação. Foram feitos testes em três campos – Sete Lagoas (MG), Londrina (PR) e Santo Antônio de Goiás (GO) – levando em consideração algumas das principais áreas produtoras. O problema é que há dezenas de variedades de feijão – por se tratar de um alimento cujas sementes são guardadas pelos agricultores familiares e submetidas a melhoramentos por cruzamento, sem alteração genética. Cada uma dessas variedades responde a uma melhor adaptação a um determinado clima, regime pluvial e solo.
“Como pesquisadora, vendo aqueles dado,s eu não aprovaria. A menos que fosse para fazer uma aprovação política. Técnica, esta aprovação não é”, critica Sarah Agapito, doutoranda do Departamento de Fitotecnia da Universidade Federal de Santa Catarina. Ela e o professor titular Rubens Nodari, ex-integrante da CTNBio, enviaram a Brasília um parecer a respeito do processo de liberação do feijão transgênico. Em oito páginas, manifestaram o estranhamento a uma série de procedimentos. O primeiro deles é a confidencialidade: a Embrapa alegou que deveriam ser mantidos em sigilo muitos pontos. “Deste modo, o monitoramento pós-liberação fica impossibilitado porque não sei qual alteração genética se realizou.”
Outra questão é que o feijão da estatal se trata de um “evento”, no jargão científico, completamente novo. Até hoje, as variedades transgênicas existentes no mundo promovem dois tipos de alterações: resistência a herbicida ou produção de toxina para matar insetos. Nos dois casos, produz-se uma proteína. O feijão resistente ao vírus mosaico dourado tem a particularidade de não produzir nenhuma proteína. O que o grão faz é, ao se desenvolver, criar pequenos fragmentos de moléculas de RNA. “Pode ter vários efeitos em cadeia que não estão estudados. Essas pequenas moléculas podem ser tóxicas, podem desrregular outros genes da planta”, explica Sarah.
Para a Embrapa, o fato de não mexer em proteínas afasta os riscos de que a substância provoque alergia ou intoxicação. Quinze dos conselheiros se deram por satisfeitos com a explicação, e destacaram que o Brasil saía na frente dos demais e poderia se orgulhar por, finalmente, ostentar um organismo geneticamente modificado produzido exclusivamente por instituições públicas de pesquisa. “Não é um orgulho nacional. É uma empresa pública desrespeitando a legislação”, afirma Ana Carolina Brollo de Almeira, assessora jurídica da Terra de Direitos presente à sessão de quinta-feira. “Não é porque é feijão da Embrapa que se vai liberar de qualquer jeito.”
No começo da semana, a Terra de Direitos, o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), a Articulação do Semi-árido Brasileiro (ASA) e a AS-PTA, uma organização especializada em projetos em agroecologia, enviaram uma carta ao ministro de Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, alertando para os atropelos do processo de liberação. Saíram desapontados com a postura do representante do ministério na CTNBio, Carlos Nobre, que se absteve durante a votação.
Um dos desrespeitos realizados ao longo do processo é relativo a uma das mais fortes regras da comissão. A Resolução Normativa número 5 prevê que, para o caso de eventos completamente novos – como é o feijão da Embrapa – é preciso realizar testes com cobaias gestantes e durante algumas gerações.
José Maria Ferraz constatou que apenas três ratos foram submetidos a experiências a respeito dos efeitos biológicos internos. Apresentaram alteração de peso, inchaço dos rins e mudanças na rugosidade do intestino. “São alterações que indicam a necessidade de fazer mais pesquisas”, avalia. “Nenhuma revista científica do mundo publicaria um estudo – e não estou falando em liberação de alimentos, estou falando de um artigo – com este número de testes”, avalia o pesquisador, que durante 33 anos trabalhou na Embrapa.
Outro detalhe é que os ratos foram alimentados com feijão transgênico durante 35 dias. Intoxicações e processos alérgicos crônicos, que são aqueles de longo prazo, não foram, portanto, colocados em jogo.
Aprovação desenhada
“Talvez por este ufanismo de ser um processo novo, totalmente brasileiro, e a primeira ocorrência dentro de uma empresa estatal, acaba-se desrespeitando uma série de precauções”, pontua Ferraz. Na reunião anterior, em agosto, ele estragou os planos da maioria dos conselheiros ao pedir vistas ao processo. Na quinta-feira, tendo em mãos o material fornecido na véspera pela Federal de Santa Catarina e após notar os testes insuficientes com as cobaias, acreditava que conseguiria convencer os colegas a debater com mais profundidade o tema.
Mas a sorte já estava lançada há muito. Antes de ter acesso aos relatórios completos, 16 integrantes da comissão, entre titulares e suplentes, haviam lançado e assinado um manifesto a favor da liberação. “O Brasil desenvolveu, através de uma biotecnologia inovadora, um feijão transgênico resistente a uma virose devastadora. O autor da façanha foi a nossa EMBRAPA (sic)”, indicava o texto, que apontava que quem se opunha à autorização estava contra a produção sustentável de alimentos e o “desenvolvimento de nosso país.”
As mesmas instituições que entregaram o manifesto a Mercadante foram ao Ministério Público Federal se queixar que tais integrantes não poderiam votar. Seria a correspondência ao princípio vigente no Supremo Tribunal Federal (STF), no qual ministros que tenham feito declarações públicas sobre uma causa deveriam se declarar impedidos de participar de votações a respeito. “Não é a votação de um time de futebol. Estamos definindo se a população corre risco com um alimento”, pondera Ferraz.
“Foi a crônica de uma aprovação anunciada”, acrescenta Leonardo Melgarejo, que gostaria ao menos de ter tido tempo para avaliar o parecer da Federal catarinense. “Não ter dúvida a ponto de achar que uma informação levantada ontem por uma universidade federal que trabalha com uma margem de risco muito pequena é algo estranho.”
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