Artigo de José Maria Ferraz, pesquisador da Embrapa Meio Ambiente e integrante da CTNBio.
Riscos do cruzamento convencional entre dois eventos geneticamente modificados (GM) como simples, sem necessidade de novas avaliações
A soma de dois eventos conhecidos nem sempre resulta na soma aritmética simples dos dois componentes isoladamente e quando se trata de eventos biológicos a interação com os aspectos ambientais pode alterar ainda mais os resultados.
Não proceder a avaliação de risco das plantas geneticamentes modificadas – PGM com dois ou mais eventos de transformação genética (stacked events,stacked traits, pyramidaded traits, pyramide3d genes or stacked transgenes) resulta também em negar as interações existentes entre as plantas, o meio ambiente e o tipo de manejo da cultura.
Como exemplo podemos citar a atividade do promotor CaMv 35S que responde às condições ambientais (Tesfaye et al., 2001) e que pode ser sensível aos fotoperíodos e temperaturas (Schnurr e Guerra, 2000), podendo levar a uma variação da expressão do transgene segundo o lugar de cultivo e a época de plantio. Exemplificando, se dois eventos por transgenese usam o promotor 35S para a expressão do transgene de interesse, como serão as expressões desses transgenes na PGM resultante de cruzamento clássico? Como prever sem antes realizar avaliações destas interações?
Um outro fator importante é a metodologia utilizada para obtenção da piramidização destes eventos. Para ser segura, as PGM stacked events necessitariam de uma avaliação da expressão dos transgenes e outros componentes do cassete de expressão, por meio de ferramentas de biologia molecular como western e northern blot, entre outras, assim como testes em condições ambientais brasileiras. Só uma análise ex-ante pode dar informações se o uso simultâneo de dois transgenes apresenta ou não algum efeito sinérgico. Desta forma, a liberação sem o procedimento de uma análise com profundidade despreza a premissa mais elementar da pleiotropia.
Resultados publicados recentemente em um estudo encomendado pelo governo austríaco (Velimirov & Binter, 2008) nos auxiliam no debate sobre os riscos associados à liberação comercial de PGM com stacked events. Este trabalho diz respeito aos riscos do Mon810 x NK603 para a saúde. Este organismo geneticamente modificado – OGM foi obtido por cruzamento clássico entre o Mon810 e o NK603. Esse estudo levanta a hipótese de alteração da fertilidade de mamíferos, alimentados com essa nova PGM Mon810 x NK603, nas 3as e 4as gerações e, de outro lado, o estudo ressalta igualmente a importância da realização de mais pesquisas sobre os riscos para a saúde no longo prazo. Desta forma fica evidente que os testes devem ser efetuados por várias gerações para terem confiabilidade.
À luz desses resultados, é legitimo perguntar se os dados obtidos estão ligados ao tempo do estudo – é a primeira vez que se realiza um estudo multigeneracional com este prazo ou ao evento estudado contendo dois ou mais transgenes. É importante ressaltar que este foi um dos primeiros estudos que contemplam um OGM stacked transgenes.
O alerta deste estudo ressalta a importância de reforçar a avaliação de risco das PGMs para a saúde, inclusive para aquelas já liberadas comercialmente, podendo inseri-los no monitoramento dos eventos já liberados – e não monitorados até hoje à necessidade de avaliações multigeracionais.
Desta forma, não considerar a necessidade de avaliação de risco para PGM stacked events porque os eventos já foram avaliados separadamente revela- se absurda do ponto de vista da saúde humana, notadamente no que diz respeito às áreas de alergologia, oncologia ou endocrinologia, não considerando os riscos potenciais de alergenicidade cruzada, as potencializações de fatores oncogênicos ou os efeitos sinergéticos de respostas hormonais.
Como exempo, é conhecido que algumas proteínas Cry podem estimular uma resposta imune (Kroghsbo et al., 2007 no caso de Cry1Ab e Moreno- Fierros et al., 2002; Vazquez et al., 1999 e Vazquez-Padron et al., 2000 no caso de Cry1Ac), o que poderia ampliar-se e até virar em reação alergênica caso ocorra simultaneamente resposta imune a outro elemento novamente inserido no genoma da planta. O fato que as proteínas Cry têm um modo de ação similar pode reforçar essas respostas imunes.
Trabalhos de Schrijver et al. (2007) alertam que as modificações dos níveis de expressão e as instabilidade moleculares são fontes de novos riscos para a saúde humana. Nos casos de avaliação de risco de PGMs nos quais foram inseridas vários transgenes via transgenese, boa parte da argumentação diz respeito às respostas das comunidades faunísticas e florísticas em relação ao uso de inseticidas ou uso de herbicidas totais em pós-emergência.
As hipóteses emitidas sobre as respostas dessas comunidades de organismos vivos no caso de liberação comercial de um evento não tem valor para um OGM que contenha dois ou mais eventos. A complexidade ecológica dessas comunidades resulta em numerosos cenários possíveis que uma avaliação de risco não permite apreender inteiramente.
Por exemplo, se uma proteína Cry, como a Cry1Ab é sintetizada pelas PGMs no campo, espera-se uma diminuição das larvas de certos lepidópteros. Se considerarmos os predadores naturais desses lepidópteros, podemos levantar a hipótese (caso se trata de predadores generalistas) que eles podem encontrar outras fontes de alimentação, como os coleópteros.
Ora, se adicionamos a essa planta a faculdade de sintetizar uma proteína Cry3Ab, a outra fonte de alimentação desses predadores desaparecerá. Esse fato não teria sido detectado (nem avaliado) nos pedidos de liberação comercial da PGM, sintetizando a Cry1Ab nem a Cry3Ab e tramitados independentemente.
Cabe ressaltar a inexistência de resultados de monitoramento de campo após a liberação comercial de OGMs com stacked transgenes, nem no Brasil nem em outros países, que nos dariam alguns elementos sobre a biossegurança de PGM com vários transgenes. Por outro lado, não podemos esquecer alguns efeitos sinergéticos ligados às interações bioquímicas no solo. Estudo de Accinelli et al. (2004) mostraram que a presença de toxinas da bactéria Bt no solo favorece a persistência do glufosinato de amônio e do glifosato no solo. Nesse caso, os organismos não-alvos do solo sensíveis aos herbicidas totais no médio e longo prazo merecerão uma avaliação de risco em um prazo mais longo.Tal fato ressalta também a importância de uma avaliação de risco ambiental própria, caso a caso.
Riscos ou efeitos detectados após a liberação comercial de eventos
Outro argumento relevante é a identificação de novos riscos ou impactos adversos que têm sido sistematicamente detectados após a liberação comercial. Portanto, o monitoramento e a re-análise só contribui para a avaliação dos biorriscos e os interesses maiores da sociedade.
São muitos os exemplos de riscos e possíveis efeitos adversos já detectados por cientistas independentes e não pelas agências regulatórias. A seguir dois exemplos que ilustram esta preocupação.
Soja RR – Estudos realizados em ratos alimentados durante oito meses com soja GM e com a utilização do glifosato mostraram anomalias da transcrição nuclear nos hepatócitos (Malatesta et al., 2002a), no pâncreas (Malatesta et al., 2002b) e nos testículos (Vecchio et al., 2004). Portanto, reforça-se a necessidade de realização de estudos a longo prazo de forma sistemática para se avaliar a natureza e a importância das possíveis patologias que os dados atuais não permitem concluir sobre a ausência destes impactos.
Primeiros estudos em PGM stacked events alertam para riscos – De 24 pares de ratos alocados no grupo controle (alimentados com isolinha de milho não transgênico) e aqueles alocados ao grupo GM stacked events NK603 x MON810, todas as fêmeas do primeiro grupo (100%) procriaram 4 vezes. No grupo alimentado com o GM stacked events, o número de filhos declinou com o tempo. Na quarta cria, somente 20 fêmeas procriaram. O número médio de filhos nascidos foi sempre menor no grupo de fêmeas alimentadas com o GM stacked events, mas não estatisticamente significativo antes da terceira procriação (Velirimov e Binter, 2008). Além disso, os autores constataram que as fêmeas tratadas com milho GM sempre procriaram filhos de menor tamanho comparativamente àqueles nascidos de fêmeas alimentadas com milho de isolinhas não transgênicas.
Conclusão
Pelos argumentos apresentados, entende-se que as PGM stacked events devem ser submetidas a uma avaliação de risco completa, incluindo os riscos para a saúde humana, animal e para o meio ambiente, entre outros de biossegurança, considerando trabalhos mais recentes que alertam para alguns aspectos não disponíveis quando da sua liberação comercial.
Devem ser revistos, inclusive, as liberações comerciais com apenas um evento, mas que apresentem pelos estudos mais recentes indícios de impactos quer sejam ambientais, para a saúde humana ou animal.
Cabe ressaltar que as avaliações de risco feitas para os eventos já liberados comercialmente sempre se basearam em parte sobre hipóteses ainda não confirmadas (“é altamente provável que”, “a fauna não deveria ser danificada”, “a PGM não deveria apresentar riscos para a saúde”…), e que aglutinar duas ou mais incertezas resulta, em geral, em incertezas maiores que a própria soma ou o produto delas. Nesse sentido, cancelar a avaliação de risco para as PGM stacked events resultará numa violação ao princípio da precaução previsto no artigo primeiro da Lei n 11.105/05. Portanto, uma ilegalidade, bem como na depreciação da fase de avaliação de risco, concretizada por uma liberação comercial.
Neste contexto, igualmente não se pode desprezar o Anexo III do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, que determina a dependência da tomada de decisão à avaliação de risco.
Na temática das PGM stacked events, mesmo a European Food Safety Authority – EFSA que sempre foi favorável à liberação comercial de transgênicos, recomenda uma avaliação de risco específica.
Assim, considerando que não existem estudos ou pesquisas comprovando um risco igual ou diferente entre as PGM stacked events e as PGM portadoras de transgenes específicos inseridos por transgenese, e em coerência com o princípio da precaução que estimula a pesquisa científica no domínio da avaliação de risco e da biossegurança, é recomendável uma avaliação de risco das PGM stacked events, conforme explicitada na Resolução Normativa n°5 estabelecida pela CTNBio.
Alem dos riscos mencionados e próprios às PGM caso a caso, deverá ser dada especial atenção às possibilidade de surgimento de resistência múltiplas nas comunidades florísticas e faunísticas alvos.
Exemplos de efeitos a serem avaliados especificamente para as PGM stacked events:
– modificações dos impactos sobre organismos alvos e não alvos;
– modificações espaço-temporal das exposições ambientais ligadas a novas condições de uso;
– adaptações do plano de monitoramento para as PGM stacked events.
Referências bibliográficas
Accinelli, C., Screpanti, C., Vicari, A. & Catizone, P. 2004. Influence of insecticidal toxins from Bacillus thuringiensis subsp. Kurstaki on the degradation of glyphosate and glufosinate-ammonium in soil samples. Agricult. Ecosyst. Environment 103, 497-507.
Kroghsbo, S., Madsen, C., Poulsen, M., Schroder, M., Kvist, P., Taylor, M.L. Gatehouse, A., Shu, Q.Y. & Knudsen, I. 2008. Immunotoxicological studies of genetically modified rice expressing PHA-E lectin or Bt toxin in Wistar rats. Toxicology, 245: 24-34.
Ultrastructural morphometrical and Malatesta et al., 2002(a), immunocytochemical analyses of hepatocyte nuclei from mice fed on genetically modified soybean. Cell Struct Funct. 27: 173-180.
Malatesta et al., 2002(b), Fine structural analyses of pancreatic acinar cell nuclei from mice fed on genetically modified soybean. Eur. J. Histochem. 47: 385-388
Moreno-Fierros, L., Garcia, N., Lopez-Revilla, R., Vazquez-Padron, R.I. 2000. Intranasal, rectal and intraperitoneal immunization with protoxin Cry1Ac from Bacillus thuringiensis induces compartmentalized serum, intestinal, vaginal and pulmonary immune responses in Balb/c mice. Microbes and Infection 2: 885-890.
Vazquez, R.I., Moreno-Fierros, L., Neri-Bazan, L., de la Riva, G.A. 1999. Bacillus thuringiensis Cry1Ac protoxin is a potent systemic and mucosal adjuvant. Scand J. Immunol. 49: 578-584.
Vazquez-Padron, R.I., Moreno-Fierros, L., Neri-Bazan, L., et al. 2000. Characterization of mucosal and systemic immune response induced by Cry1Ac protein from Bacillus thuringiensis HD 73 in mice. Braz. J. Med.Biol. Res. 33: 147-155.
Vecchio et al., 2004. Ultrastructural analysis of testes from mices fed on genetically modified soybean. Eur. J. Histochem. 48 : 449-454.
Velimirov, A. & Binter, C. 2008. Biological effects of transgenic maize NK603xMON810 fed in long term reproduction studies in mice. Forschungsberichte der Sektion IV Band 3/2008.
Zolla, L. et al. 2008. Proteomics as a Complementary Tool for Identifying Unintended Side Effects Occurring in Transgenic Maize Seeds As a Result of Genetic Modifications. Journal of Proteome Research, 7: 1850-1861
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O artigo está disponível para download na página da Embrapa:
http://www.embrapa.br/imprensa/artigos/2009/Piramidizacao_JoseMariaGFerraz.pdf/view
Caros leitores.
Na questão das plantas geneticamente modificadas não parece mesmo haver consenso e há sempre vozes discordantes em relação às afirmativas majoritárias de que estas plantas são seguras, provenientes dos órgãos técnicos. Não há, contudo, muito sentido em afirmar que a piramidação de dois eventos considerados seguros venha trazer novos riscos ao consumidor, além daqueles já apontados para os dos eventos isolados. Por isso, da planta obtida por cruzamento genético convencional de duas variedades GM deve-se esperar a soma dos riscos apontados para as duas plantas. Analogamente, se 5 eventos GM forem unidos por cruzamento convencional numa só planta, deve-se esperar que ela leve consigo os riscos somados de todos os eventos envolvidos, mas nenhum novo risco, proveniente da piramidação em si.
De todos os artigos citados pelo autor, o único que trata do efeito da piramidação sobre os transgênicos é o de Zolla e cols.; os demais são focados em eventos únicos ou usam o piramidado, mas sem qualquer comparação dos os efeitos que pudessem ter aparecido no mesmo ensaio com efeitos observados nos eventos isolados. Além disso, o texto de Velimirov e cols. não é efetivamente um trabalho publicado em revista de corpo editorial rígido, mas um relatório de experimento encomendado pelo Ministério da Saúde na Áustria e, na leitura da maior parte dos cientistas da área, muito ruim. O próprio artigo de Zola e cols. não chega de fato a conclusão nenhuma e não levanta qualquer implicação em biossegurança.
Para resumir, os eventos piramidados não devem trazer novos riscos, apenas a soma de riscos das plantas GM envolvidas nos cruzamentos, o que, para muitos, já seria o bastante para que elas não fossem usadas como alimento nem plantadas nos campos do país.
Cordialmente,
Paulo Paes de Andrade
CTNBio e Depto. Genética/ UFPE