Revista Consultor Jurídico, 14 de abril de 2013
Por Vladimir Passos de Freitas
O ser humano utiliza há séculos a agricultura, a fim de poder satisfazer suas necessidades alimentares. Todavia, a forma de plantio que se dava mais para a própria subsistência, a partir dos anos 1950 foi substituída. As práticas tradicionais da enxada e do arado deram lugar a tratores e colheitadeiras. O adubo orgânico cedeu espaço a produtos químicos usados para combater as pragas. Estas mudanças foram chamadas de “Revolução Verde”.
A exploração do campo passou a ser um negócio mais complexo e rentável. Por outro lado, a produção de alimentos em larga escala fulminou a previsão catastrófica de Malthus, para quem o aumento populacional significaria o fim da humanidade. No entanto, outros problemas surgiram. Entre eles o uso exacerbado de produtos químicos, sendo o Brasil o maior consumidor do mundo.
Os agrotóxicos, ensina Paulo A. Brum Vaz, “são toxinas utilizadas para matar, controlar ou afastar os organismos indesejados da lavoura, tais como: os herbicidas (que matam plantas invasoras) e pesticidas, divididos em inseticidas (que matam diversas espécies de insetos), fungicidas (que matam fungos), acaricidas (que matam ácaros), bactericidas (que matam bactérias), algicidas (que matam algas), rodenticidas (que matam roedores), formicidas (que matam formigas), molusquecidas (que matam moluscos) e outros” (O Direito Ambiental e os Agrotóxicos, Livraria do Advogado, página 22).
Apesar de beneficiar a agricultura, eles trazem consigo uma carga de perigo. O alerta veio da biologista norte-americana Rachel Carson, no livro “Primavera Silenciosa”, em 1962. Em linguagem simples e argumentos convincentes, Carson atacou o uso elevado de pesticidas, em especial o DDT, atribuindo-lhes a origem de doenças como o câncer, além de danos ao meio ambiente. Apesar de atacada pelas grandes corporações da área, ela conseguiu abolir o DDT e influenciar na criação da poderosa Agência de Proteção Ambiental.
No Brasil, o agronegócio assumiu um papel de grande relevância na economia nacional. Segundo Roberto Rodrigues, ex-Ministro da Agricultura, no ano passado foi ele a causa de exportações no valor de US$ 95,8 bilhões. Na outra ponta, os problemas ambientais agravaram-se, atribuindo-se ao uso excessivo ou irregular dos agrotóxicos a poluição do solo, dos rios, morte de espécimes da fauna, além de fundadas suspeitas de aumento de doenças, como o câncer, nos seres humanos.
Que fazer diante desse cenário complexo e de difícil visualização? E o Direito, qual a sua importância nesse contexto?
A agricultura, tal qual a economia, está vinculada à proteção do meio ambiente, conforme dispõe o artigo 186, inciso II, da Constituição, e artigo 3º, inciso IV, da Lei 8.171/91, que trata da Política Agrícola. Partindo deste pressuposto, cumpre saber como os agrotóxicos entram no mercado. A autorização para a venda depende da aprovação do Comitê Técnico de Assessoramento para Agrotóxicos (CTA), que é composto por representantes do Ibama , Ministério da Agricultura e da Anvisa. São decisões complexas. Vejamos alguns exemplos.
Noticiou a Folha de S.Paulo, de 7 de abril de 2013, que a Anvisa não liberava agrotóxicos mais danosos à saúde do que outros já presentes no mercado com o mesmo fim e princípio ativo, chamados de produtos de referência. Todavia, com base em parecer emitido pela AGU, foi atendido pedido da CCAB Agro, com o registro do Acetamiprid. O fato foi analisado no Ministério Público Federal, que recomendou à Anvisa suspender o registro dos produtos liberados com base na nova interpretação. O desfecho certamente se dará no Judiciário.
O jornal O Estado de S. Paulo, de 10 de abril de 2013, informou que o Ministério da Agricultura liberou o uso de um agrotóxico contendo benzoato de emamectina não registrado no Brasil, para combater lagartas nas lavouras de algodão e soja. Ocorre que, em 2007, a Anvisa havia proibido essa substância por considerá-la tóxica para o sistema neurológico. Provavelmente, a questão irá terminar nos Tribunais.
Tramitou na Vara Ambiental da Justiça Federal em Curitiba, PR, ação civil pública proposta pelo Ministério Público Estadual e a Associação XAMA contra a Anvisa e o Ibama. Os autores pediram a proibição, cancelamento e impedimento de novo registro de qualquer agrotóxico que na sua composição química tivesse o produto 2,4-D. Após processada, decidiu a Juíza Sílvia Brollo, em 19 de fevereiro de 2013, referendar a atuação do Poder Público e a prova técnica realizada, julgando improcedente a ação (processo 2005.70.00.022808-4/PR).
A entrada de um produto autorizado no mercado dá-se através da venda, pelas grandes companhias do setor, que entregarão o material a revendedores que os estocarão, aguardando o comprador. Estas e outras medidas devem ser feitas com as cautelas previstas na Lei 7.802/89, no Decreto 4.074/02, Resolução Conama 334/03 e outros atos administrativos. Não estão nesta fase os problemas. As multinacionais cumprem as regras de cautela determinadas, não querem problemas. As dificuldades começam no momento posterior.
Os adquirentes dos produtos químicos, ou seja, os agricultores, estão obrigados a utilizá-los com toda cautela. Por exemplo, as embalagens devem ser devolvidas aos estabelecimentos comerciais revendedores no prazo de um ano (artigo 53 da Lei 4.074/02). O motivo é claro, elas podem conter resíduos que venham a envenenar o solo ou a água. Portanto, o intermediário os receberá do agricultor e os repassará à empresa de produtos químicos para que sejam reciclados.
Como se dá a fiscalização de tais atos, em fazendas espalhadas pelo imenso território nacional? Terão todos os estados meios de fiscalizar com o necessário rigor? São quase inexistentes precedentes judiciais discutindo as multas.
A fiscalização é feita por fiscais estaduais agropecuários, via de regra vinculados às Secretarias da Agricultura. No Paraná cabe à Adapar (Agência de Defesa Agropecuária do Paraná), vinculada à Secretaria da Agricultura e Abastecimento, a liberação do comércio destes produtos e a fiscalização no campo da correção do uso, uma vez que eles devem ser prescritos e usados com a estrita observância das recomendações de rótulo e bula que acompanham os produtos no mercado.
No âmbito civil, ou seja, ações inibitórias ou indenizatórias, a dificuldade persiste. Poucos são os precedentes. A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul mostra que a dificuldade maior está em provar o nexo causal entre o uso dos defensivos e o dano ambiental causado (ACiv. 70007930837, julgada em 24 de maio de 2004), que é possível transferir ao réu o ônus da prova em casos de pulverização feita por aviões, que causem danos a vizinhos e ao meio ambiente (AI 70052261971, julgada em 28 de janeiro de 2013) e que o possuidor de área poluída não pode eximir-se da responsabilidade alegando não ser proprietário (AI 70034056036, julgado em 31 de março de 2010).
No âmbito penal também são poucos os julgamentos. A Polícia Civil, exceto em Delegacias especializadas, tem dificuldades em investigar este tipo de delito. Se não há investigação, não há precedentes. É rara a jurisprudência, sendo que boa parte diz respeito à importação irregular de agrotóxicos (v.g., TRF-4, HC 5005492-79.2013.404.0000, julgado em 21 de março de 2013). Em caso de capina química em lavoura, crime do artigo 15 da Lei 7.802/89, os réus foram absolvidos no TJ-RS por falta de perícia (ACr 70.030.511.372, j. 11 de março de 2010).
Vê-se, pois, que o uso dos agrotóxicos e seus efeitos eventualmente nocivos é ainda ignorado pela maioria da população e não tem merecido a atenção da comunidade jurídica. Pouco se sabe sobre o limite do risco, pelos efeitos cumulativos em nosso organismo, sobre os danos ambientais e à saúde. Tudo isto está a exigir discussões e debates mais claros, maior publicidade nas licenças e autorizações.
É necessário: a) conhecermos a posição da União Europeia, dos Estados Unidos e também dos nossos vizinhos mais próximos sobre a autorização para a venda de certos produtos; b) que os autos de infração administrativa dos fiscais agropecuários sejam remetidos à Polícia ou ao MP para apurar-se a responsabilidade penal; c) estender-se a competência para fiscalizar à Polícia Ambiental e aos órgãos municipais; d) o Judiciário ter jurisprudência consolidada sobre as questões mais polêmicas.
Enfim, necessitamos mais conhecimento e segurança.
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Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
O artigo é Bastante instrutivo, mas tem uma falha: alega que as grandes multinacionais produtoras de venenos cumprem as medidas de segurança obrigatórias “pois não querem problemas”, e que “as dificuldades começam no momento posterior”, remetendo a responsabilidade pelos danos ambientais aos agricultores. O autor não observou que entre julho de 2009 e agosto de 2010 a Anvisa realizou dez fiscalizações em fábricas de agrotóxicos e encontrou graves irregularidades em todas (ver Agrotóxicos no Brasil – um guia para ação em defesa da vida). Os crimes cometidos por empresas do porte da Bayer, Syngenta, Basf e Monsanto, entre outras, envolvem desde a adulteração na fórmula de produtos e a falsificação de prazos de validade até o uso de substâncias para reduzir o odor e “perfumar” os produtos adulterados. Essas ações de fiscalização foram executadas graças ao empenho de pessoas como Luiz Cláudio Meirelles, ex-gerente geral de toxicologia, e Letícia Rodrigues, ex-gerente de normatização e avaliação. O primeiro foi exonerado em de novembro de 2012, após ter denunciado irregularidades no processo de liberação de seis agrotóxicos. A segunda deixou o cargo em solidariedade ao chefe. A ver se esse fundamental trabalho de fiscalização dos grandes fabricantes de agrotóxicos continuará a ser realizado.