O GLOBO, 08/07/2013

RIO E CASCAVEL (PR) — Se há dez anos o Brasil legalizava a soja transgênica — sob pressão de fazendeiros gaúchos que plantaram a semente da Monsanto sem autorização —, hoje o país briga com os Estados Unidos pela liderança mundial da produção do grão, com 88% de sua safra geneticamente modificada. No mesmo ritmo da produção, avançam as polêmicas. Se, por um lado, começa a inédita concorrência entre multinacionais e a Embrapa pelo mercado de sementes, cresce no país o debate sobre os efeitos colaterais das novas tecnologias — como a menor resistência a pragas e danos ao solo. Apesar da alta produtividade, os que investiram na transgenia não têm garantido a maior lucratividade. Diferentemente do que se imagina, são os produtores da soja convencional que recebem mais pelo grão, graças à demanda de japoneses e europeus pelo alimento não modificado. Com isso, o Brasil ostenta o título de maior produtor de soja convencional do planeta.

Nesta década, o país viveu uma revolução tecnológica no campo, viu sua produção de soja avançar no Cerrado do Centro-Oeste e crescer 56%. O preço do grão, em dólar, disparou 140%. Foram oito safras recorde consecutivas, com lucros para os produtores rurais. Mas o Brasil perdeu espaço na exportação da soja processada, de maior valor agregado, seja em farelo ou óleo, abandonando a oportunidade de enriquecer o produto e gerar empregos.

— Havia um preconceito muito grande com os transgênicos, que é uma ferramenta importante para o agronegócio. Mas temos que lembrar que não é viável ter só um tipo, só o transgênico ou só o convencional — afirma Glauber Silveira, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil).

Multinacional enfrenta ação judicial

Silveira defende a convivência de todas as formas de semente:

— Essa é a riqueza do país, temos diversos tipos de soja. Qual é a melhor? Depende da realidade de cada produtor.

Executivos do mercado destacam que a soja convencional está mais lucrativa para o agricultor.

— Há um grupo de consumidores que paga até R$ 6 a mais por saca do grão, ou 10% do total, para ter soja convencional. São europeus e asiáticos, em geral japoneses, que preferem a soja tradicional para produzir tofu. E o Brasil está se dando bem, não adotamos 100% da transgenia, como ocorreu nos Estados Unidos e na Argentina, e hoje somos os maiores produtores mundiais de soja convencional — afirma Ricardo Tatesuzi de Sousa, diretor da Associação Brasileira de Produtores de Grãos Não Geneticamente Modificados (Abrange).

Lucratividade à parte, a exposição a pragas preocupa. O chefe da Embrapa Soja, Alexandre Cattelan, defende um rodízio entre os tipos de soja, para evitar a resistência de certos insetos nocivos — fenômeno semelhante ao uso constante de antibióticos por humanos, que diminui a defesa do corpo. Cattelan acredita que este rodízio poderá ser feito, inclusive, com diferentes modalidades de transgênicos que devem entrar no mercado nos próximos anos. Na última década, só havia a RR1, modificação genética da Monsanto, que tornava a soja resistente ao glifosato, herbicida que acabava com as ervas daninhas das lavouras. Neste ano, será lançada a Intacta, também da Monsanto, que acrescenta à soja a resistência a alguns insetos. E nos próximos anos estão previstas sementes de Basf, Dow, Bayer e da parceria Embrapa/Basf, esta última com custo menor. Além disso, há a expectativa sobre novas tecnologias da Pioneer DuPont e da Syngenta:

— Isso vai alterar ainda mais o mercado, teremos concorrência e produtos que melhor se adequam a cada região — diz Cattelan.

— O mercado está vivendo um período de grandes transformações na área de sementes — atesta Marcelo Bohnen, gerente de licenciamento da Cooperativa Central de Pesquisa Agrícola (Coodetec).

Os dez anos de reinado isolado da Monsanto não foram simples. A multinacional americana está sendo processada por produtores brasileiros e paraguaios, que alegam ter pago os royalties das sementes dois anos depois do fim do direito exclusivo da Monsanto. Alguns produtores estimam que a empresa terá que devolver mais de R$ 1 bilhão apenas para os produtores do Mato Grosso.

A nova semente da empresa também é considerada cara pelos produtores, já que a Monsanto estuda cobrar R$ 115 por hectare plantado, valor muito acima dos R$ 26 cobrados pela semente antiga.

— Não tememos a concorrência, acreditamos que os produtores vão saber escolher o que é melhor para eles. E temos estudos que mostram que a Intacta reduz o custo e eleva a produção em R$ 300 por hectare — afirma Leonardo Bastos, diretor de Marketing da Monsanto, que não comenta a ação judicial, por afirmar que o caso ainda será alvo de recursos no STJ e no STF. Ele estima que o total de transgênicos passa de 90% da sofra 2013/14.

Especialistas, contudo, afirmam que a transgenia — que também está presente em 60% da safra do milho, em 55% na produção de algodão e que nos próximos meses chegará ao feijão — não foi o fato isolado no aumento da safra da soja no Brasil:

—Tivemos uma revolução, também por outras tecnologias e pela alta do preço, graças à demanda chinesa. Com isso, temos o recorde de oito anos com lucro no setor, que muda toda a lógica de plantação e garante mais investimentos em pesquisa — afirma André Pessoa, diretor da consultoria Agroconsult.

E há espaço para novos ganhos de produção:

— Lançamos o desafio de ampliar a produtividade da soja de 47 sacas (60kg) por hectare para 67 sacas. É um desafio, e isso pode, inclusive, reduzir a necessidade de novas áreas para a plantação — diz Orlando Carlos Martins, presidente do Comitê Estratégico Soja Brasil (Cesb), lembrando que este novo patamar de produtividade pode ser atingido em 2020.

Exportação de processados cai

Mas há quem não comemore o boom da soja:

— Há dez anos, a exportação do grão representava 52,3% do total do complexo soja, o restante era farelo e óleo (produtos processados). Hoje o grão representa 67%. Temos uma estrutura tributária que gera créditos, mas que as processadoras não conseguem compensar, o que onera nossa produção em cerca de 15%. Deixamos empregos para a China — critica Daniel Furlan Amaral, gerente de economia da Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais (Abiove).

Antídoto ao inseto é muito tóxico aos seres humanos e seu uso gera polêmica

BRASÍLIA E RIO — A primeira arma comprovadamente eficiente para conter a helicoverpa armigera não foi usada na Bahia nesta safra por conta de um entrave institucional, o que acabou colaborando para a expansão da praga. O benzoato de emamectina é um veneno com alto grau tóxico para os seres humanos, por isso o seu uso não foi aprovado pelo comitê técnico de avaliação de agrotóxicos — composto pelos ministérios da Agricultura, Saúde e Meio Ambiente.

De maneira unilateral, a Agricultura assumiu a responsabilidade pelo ato e aprovou a importação do agrotóxico, que chegou ao país, mas não foi usado porque o Ministério Público da Bahia conseguiu barrá-lo na Justiça.

— O governo decidiu, mas os promotores por aqui impediram o uso — disse Celito Breta, presidente da Associação Baiana de Produtores de Algodão (Abapa). — Eles estão por fora, ouviram só parte do assunto — completou.

— É absurdo o uso de um veneno que afeta o sistema neurológico das pessoas — disse o deputado Sarney Filho (PV-MA), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista.

Governo prepara decreto

Diante do impasse, o governo prepara um decreto para detalhar condições e prerrogativas que devem ser adotadas em casos de ameaças similares. A norma deverá ser lançada no dia 30, criando o programa nacional de Manejo Integrado de Pragas, que será detalhado em seminário sobre o tema. Ele envolve não apenas seleção de insumos, mas ações de técnica agrônoma, como rotação de culturas e regras de rodízio.

— Constatamos que precisamos melhorar a regulamentação. Até então lidamos com emergências não-agudas e não tenho dúvida de que vamos passar a ter mais situações de urgência, por conta da forma como o ambiente tem sido usado e pela introdução de espécies exóticas no país — disse o coordenador geral de avaliação de substâncias químicas do Ibama, Marcio Freitas.

— Com o manejo integrado e biofábricas para controle biológico espalhadas pelo país, é possível que essa praga esteja sob controle no período de apenas uma safra — avalia Jefferson Costa, assessor da Embrapa.

Praga ‘importada’ se alastra por 12 estados e prejudica lavouras

BRASÍLIA E RIO — O governo acionou a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e demais órgãos de inteligência da esfera federal para investigar a origem de uma praga devastadora que colocou o país em uma inédita situação de alerta fitossanitário. A helicoverpa armigera, que está fora de controle, é uma espécie de mariposa que foi trazida do exterior recentemente e já causou prejuízo de R$ 1,5 bilhão apenas nesta safra de algodão no oeste da Bahia, onde foi vista pela primeira vez no país. A praga causa estragos também no cultivo de milho, soja, sorgo, feijão e tomate, e já afetou 12 estados brasileiros.

Sua entrada pode ter sido involuntária, mas relatórios feitos pela Abin e entregues ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e à própria Presidência da República trabalham também com a hipótese de contaminação não acidental. O governo constatou ainda que, enquanto a disseminação traz danos enormes para a agricultura nacional, ao mesmo tempo beneficia empresas internacionais.

Monsanto refuta suspeitas

Suspeitas são levantadas contra empresas de transgênicos que já trabalhavam com genes resistentes à helicoverpa armigera, antes mesmo de o inseto ser visto no país. A Monsanto reconhece que já pesquisava no Brasil genes que colaboram para a supressão da praga, mas aponta que o pedido de registro dos ativos sequer considerava essa hipótese. Mesmo assim, a venda dessas sementes na próxima safra será “ínfima”, segundo Luciano Fonseca, líder de gestão responsável de produto da Monsanto. Para ele, é uma “irresponsabilidade” levantar a hipótese de um ato voluntário, principalmente considerando-se o envolvimento da indústria de insumos.

Leonardo Bastos, diretor de Marketing da empresa, informou, porém,que 10% da produção brasileira de soja da próxima safra já serão com as sementes resistentes à praga.

— Empresa de insumo vive em função do sucesso do produtor, não do fracasso— disse Fonseca, lembrando que outras concorrentes já se mobilizam para fornecer genes resistentes à mariposa.

A praga já contaminou gigantescas áreas na Austrália, na Índia e na Europa. No Brasil, pelo menos a Bahia já declarou situação de emergência e Mato Grosso e Goiás estão para fazê-lo. As linhas de investigação passam pela comparação de marcadores no DNA da espécie vista no país com exemplares de outros cantos do mundo.

Hipóteses incluem sabotagem

É possível que o caminho exato da larva nunca seja descoberto ou que seja comprovadamente fortuito, mas o governo não descarta a possibilidade de sabotagem, uma vez que o Brasil vem se consolidando como protagonista agrícola no mundo. A hipótese de bioterrorismo já foi considerada pelo menos por Eduardo Salles, secretário de Agricultura da Bahia. A vassoura-de-bruxa, fungo que reduziu a partir de 1989 de maneira permanente a competitividade do cacau brasileiro, é outra praga que chegou ao Brasil em condições até hoje suspeitas.

Os transgênicos podem ser parte do problema e parte da solução para o extermínio da helicoverpa armigera. O Ministério da Agricultura tem três vertentes para o controle da lagarta: o aumento da quantidade de sementes transgênicas protegidas; pesquisas da Embrapa para entender melhor o inseto; e estudos de produtos que possam combatê-lo sem prejudicar a saúde humana. A multiplicação pelo país da mariposa (que coloca 1.500 ovos a cada 40 dias) deixou exposto a vulnerabilidade do sistema de proteção nacional, que o governo agora corre para rever.

— Eu passei 40 anos no campo e nunca vi nada tão agudo. Não tem aftosa, vaca louca, nada igual a isso — disse o secretário de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Ênio Marques. — O Brasil não pode ser ingênuo ao achar que todos nos amam — completou.

Na visão de Rui Prado, da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a praga veio da Austrália:

— Estamos vivendo um problema (desde 2001) até hoje da ferrugem asiática da soja, que ainda causa um prejuízo grande. A gente aprendeu a controlar, mas essas coisas têm um custo na produção — disse.

Para Leonardo Melgarejo, técnico do Incra e membro da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), os transgênicos têm responsabilidade na expansão da helicoverpa armigera e o uso de mais variações genéticas para combatê-la pode levar a um problema sistêmico maior.

— A sucessão de uso dessas culturas transgênicas vai criar desequilíbrios ambientais que ainda não podemos avaliar. Quando se libera comercialmente um produto, esse uso massivo gera variáveis incontroláveis, não percebidas nos canteiros experimentais — disse (Colaborou Henrique Gomes Batista).

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