CARTA CAPITAL, 05/11/2013

por Samantha Maia

Da clandestinidade à quase onipresença nas lavouras de soja, as sementes transgênicas da Monsanto passaram por cima da polêmica sobre os riscos ao meio ambiente, à saúde humana e à concentração do mercado. Na última década, desde a liberação no mercado nacional, em 2003, o Brasil tornou-se o segundo mercado da companhia, atrás apenas dos EUA. Em 2012, seu faturamento aqui chegou a 3,4 bilhões de reais, 21% mais que em 2011. No caminho aberto pela soja Roundup Ready, chegaram versões geneticamente modificadas de milho e algodão. Outras multinacionais seguiram o rastro, assim como a Embrapa. Abafada desde a legalização, a discussão associada aos efeitos diretos e colaterais da agricultura transgênica pode voltar ao primeiro plano. Argumentos não faltam.

Mesmo no governo federal há divergências. O Ministério da Agricultura e a Embrapa são entusiastas da nova tecnologia. Já o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) tem alertado para os efeitos colaterais indesejáveis. Desde 2009, diz o MDA, o Brasil tornou-se o maior consumidor e produtor de agrotóxicos do planeta por causa das sementes transgênicas, mais resistentes aos agrotóxicos. Apoiado nesse argumento, no início de outubro o procurador federal Anselmo Cordeiro Lopes, do Distrito Federal, enviou um ofício à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança para incluir audiências públicas nos processos de análise para a liberação do uso comercial dos transgênicos. Ex-integrante da comissão, o agrônomo Rubens Nodari, especialista em genética, considera o órgão esvaziado desde a sua criação. “A falta de discussão tornou a CTNBio mera carimbadora de aprovações”, afirma o especialista.

Resultado: estima-se que todos os derivados de milho consumidos no País sejam transgênicos e a soja geneticamente modificada está em grande parte dos alimentos que levam lecitina de soja, de biscoitos a chocolates. A letra T em um triângulo amarelo nas embalagens indica a presença de ao menos 1% de ingredientes modificados, mas o expediente não tem sido eficiente para informar os consumidores. E, em muitos casos, a exigência nem sequer é cumprida. A entrada dos transgênicos no Brasil precedeu a regulamentação. A soja resistente ao glifosato (Roundup, fabricado pela Monsanto) foi contrabandeada da Argentina a partir de 1998 e, em poucos anos, dominou os campos do Sul do País. Em 2003 o governo liberou a comercialização das safras ilegais, mesmo sem ter feito os testes definitivos para provar a segurança dos produtos geneticamente alterados.

Baseados no princípio da precaução, estudos independentes têm barrado a entrada da produção transgênica na União Europeia. O pesquisador francês Gilles-Eric Séralini, entre outros, detectou um aumento de casos de câncer em ratos alimentados pelo milho NK603, também da Monsanto, liberado no Brasil desde 2008. Apesar de admitir ser importante aumentar a exigência de tempo de realização dos estudos solicitados às empresas, a CTNBio recusou-se a reavaliar a liberação do milho. Imperturbável, Flavio Finardi, presidente da comissão, diz existirem falhas técnicas no estudo francês. A reação da União Europeia foi liberar 3 milhões de euros para novas investigações científicas, em andamento.

Hoje há 56 variedades transgênicas aprovadas no Brasil: sementes de soja, milho, algodão e feijão. Apenas o último, desenvolvido pela Embrapa, ainda não é comercializado. Segundo as fabricantes de sementes alteradas, as lavouras transgênicas produzem mais e demandam menos agrotóxico, com economia de água, diesel e menor geração de gás carbônico. A Céleres, consultoria ligada às empresas de sementes, calcula em 19 bilhões de dólares os benefícios acumulados em 16 anos de biotecnologia no Brasil. Mas os dados também são controversos, a começar pela quantidade de agrotóxicos nas lavouras.

A saída da Agência Nacional de Vigilância Sanitária foi elevar o limite máximo do agrotóxico aceitável na soja. Mas o uso do glifosato trouxe consequências.

como o surgimento de ervas daninhas resistentes e o aumento do risco de intoxicação do consumidor. Mais uma vez a despeito de evidências científicas em sentido contrário. Estudo recente da ONG Friends of the Earth detectou resíduo do herbicida na urina de 44% dos consumidores testados em 18 países europeus. No Brasil, a fiscalização sobre o uso dos agrotóxicos é feita pelos governos estaduais e acompanhada pelo Ministério da Agricultura. Há pouca informação, porém, sobre os impactos das quantidades permitidas sobre a saúde humana. As empresas sustentam, obviamente, a segurança do herbicida.

Enquanto a maioria dos integrantes da CTNBio se diz convencida da validade dos transgênicos, o mercado europeu premia os produtores das variedades convencionais. Na safra 2012-2013, a cooperativa Castrolanda, no sul de São Paulo, recebeu 4 reais de bônus por saca de 60 quilos de soja convencional. A remuneração compensou o trabalho de destinar um galpão exclusivo para o grão e a limpeza dos equipamentos usados para não restar vestígios dos grãos transgênicos, pois os testes são capazes de detectar quantidades ínfimas. Ainda assim, das 50 mil toneladas da oleaginosa produzidas naquele ano pela Castrolanda, apenas 10% foram não transgênicas e a expectativa é manter o mix na próxima safra.

Diante da ofensiva dos transgênicos, os agricultores interessados no cultivo convencional se uniram na Associação Brasileira dos Produtores de Grãos não Geneticamente Modificados (Abrange), para garantir seu espaço. Em 2010, em parceria com a Embrapa, lançaram o Programa Soja Livre para ampliar a oferta de sementes convencionais em Mato Grosso, o principal produtor do País. Neste ano, colocou no mercado um certificado para sementes tradicionais. “Muitas promessas de resultados com as sementes geneticamente modificadas não se confirmaram. E o custo da segregação fica com quem não quer produzir transgênico”, diz César Borges de Sousa, presidente da Abrange.

Também aí há polêmica. Segundo o produtor Luiz Moulatlet, não há diferença de produtividade ou de custo entre as duas culturas. A facilidade de manejo da espécie resistente ao glifosato tem sido perdida há duas safras, desde o surgimento de pragas resistentes. E outros agrotóxicos precisam ser usados, o que encarece o cultivo. Por causa disso, os cooperados da Castrolanda se opõem ao milho resistente ao glifosato. Os herbicidas disponíveis no mercado dariam conta do recado. “Mas sabemos que com o aumento do uso chegará uma hora em que encontraremos no mercado mais dessa opção do que outras”, diz Rudnei Bogorni, agrônomo da Castrolanda.

Alheia aos embates que, impávida, considera ideológicos, a Monsanto pretende seguir a sua trajetória de crescimento acelerado. Segundo Leonardo Bastos, diretor de marketing da empresa, a companhia aposta suas fichas no mercado brasileiro. Com 36 unidades em 12 estados, a multinacional atua com pesquisas, processamento de sementes e a produção do herbicida. Em 2008, comprou a empresa de engenharia genética CanaVialis e iniciou as pesquisas para desenvolver uma espécie de cana-de-açúcar alterada, igualmente resistente ao glifosato e às pragas.

A soja Intacta, produto exclusivo para o mercado nacional, é a grande novidade no portfólio da Monsanto. Se emplacar, o retorno da variedade resistente a lagartas deverá ser significativo, estima Bastos. A nova semente é vendida por 115 reais por hectare plantado, enquanto a versão anterior, a RR1, custa 22 reais por hectare. Segundo o executivo, os benefícios compensam: uma redução de 360 reais dos custos por hectare. “Testes feitos em campo mostram que há redução da aplicação de inseticida e o aumento da produtividade.”

É a regra do Brasil: interessa é produzir mais, mesmo com risco para a saúde dos consumidores.