Para a indústria, é um aperfeiçoamento da linhagem. Para cientistas, é a evidência mais robusta de que a biotecnologia pouco estudada é ineficaz no combate ao transmissor do vírus da dengue
COBAIAS HUMANAS

por Cida de Oliveira, da Rede Brasil Atual publicado 03/08/2017 15h53, última modificação 04/08/2017 11h43

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Fêmea do Aedes, que transmite o vírus causador de doenças, está na mira de nova e – e polêmica – linhagem geneticamente modificada

São Paulo – A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou na manhã desta quinta-feira (3) pedido da Oxitec do Brasil para a liberação planejada no meio ambiente de cepas do mosquito Aedes aegypti OX5034. Com aval da maioria dos integrantes do colegiado vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), a empresa poderá soltar uma nova linhagem de insetos geneticamente modificados, ainda em fase experimental, sobre a população de bairros do município de Indaiatuba, na região de Campinas, interior de São Paulo. O objetivo da experiência é reduzir a população selvagem do Aedes transmissor do vírus causador da dengue, Zika e Chickungunya.

Pronta para ser testada a campo, essa nova linhagem tem como novidade a inserção de um gene defeituoso que será transmitido à prole e será fatal para as fêmeas, que terão morte prematura ainda na fase larval. Ou seja, elas estão marcadas para morrer depois da eclusão dos ovos – a fase aquática do ciclo de vida do mosquito, quando ainda não se transformou em inseto alado.

“Permitir que apenas os machos cheguem à fase adulta é uma inovação, uma evolução. É o aperfeiçoamento da linhagem anterior, que vai permitir um controle mais efetivo, mais rápido, usando menos mosquitos transgênicos. Isso vai permitir que, futuramente, a gente consiga diminuir a quantidade de mosquitos que serão soltos para copular e transmitir para a sua prole o gene defeituoso que causará a morte do inseto antes da fase adulta”, explica o gerente de negócios da Oxitec, Claudio Fernandes.

Na linhagem atualmente comercializada pela empresa – OX513A –, os mosquitos carregam proteínas que provocarão sua morte antes que atinjam a idade reprodutiva. Essa característica é transmitida aos seus descendentes a partir do acasalamento com fêmeas selvagens.

Sem parâmetros

Para cientistas, a novidade não é propriamente uma evolução, mas o reconhecimento, pelo fabricante, de que a tecnologia não funciona. “Se eles estão lançando essa versão nova, é porque perceberam que a primeira tem defeito que precisa ser corrigido; não serve para coisa nenhuma. E o lançamento dessa nova linhagem é mais um ato antiético e desonesto da empresa, que mesmo reconhecendo falhas na primeira versão, continua colocando à venda”, afirma o professor do Departamento de Biologia da Unicamp e integrante da CTNBio, o entomologista Mohamed Mostafa Habib, que apresentou hoje parecer contrário à liberação do novo mosquito transgênico.

“Como podem estar pedindo autorização para um produto supostamente melhor e continuar vendendo esse que apresenta problema? Isso é desrespeito à população brasileira, à academia brasileira; é uma postura antiética empresarial que não podemos aceitar”.

Com 53 anos de experiência na pesquisa de insetos, inclusive pernilongos, Mohamed considera que essa nova linhagem, assim como a primeira, está cheia de problemas. Mas destaca que o principal deles, básico, já é suficiente para desqualificar a produção de todos esses mosquitos e sua liberação, em grandes quantidades, em bairros habitados, trazendo incômodos e provocando reações alérgicas em pessoas sensíveis a asas de insetos.

“Eles querem reduzir a população selvagem de Aedes a partir do método da competição no acasalamento. Adotado em todo o mundo há mais de 50 anos, mostrou bons resultados apenas em áreas insulares, como ilhas, oásis, vales cercados de montanhas por todos os lados, em áreas isoladas geograficamente. Mas não funciona em extensas áreas abertas, como faz a Oxitec em Piracicaba, por exemplo, em que é impossível controlar a migração dos insetos de um local para outro”, afirma.

Esse descontrole, segundo ele, desmente a propaganda da empresa sobre os supostos resultados obtidos com sua tecnologia. Isso porque faltam parâmetros confiáveis para avaliar os possíveis impactos sobre a população de mosquito selvagem. “A eficiência na disputa pela fêmea depende da relação numérica entre os machos silvestres existentes no local e os machos transgênicos a serem liberados”, afirma.

“Se uma fêmea de Aedes, que copula apenas uma vez, está em um quarto fechado com um macho selvagem e um transgênico, a chance de cada um é de 50%. Se forem nove machos transgênicos e um selvagem, a chance de cruzar com um inseto silvestre é menor, de 10%. E se forem 99 geneticamente modificados ou estéreis, essa chance cai para 1%. Essa matemática simples é para mostrar que eu tenho de saber qual é a população selvagem no ambiente. Se a Oxitec não sabe, como saberá a eficiência que terá com o método?”, questiona Mohamed.

“É baboseira tudo o que eles estão dizendo, porque não há avaliação do tamanho da população de insetos selvagens; e porque é impossível controlar o fluxo migratório de mosquitos em áreas geográficas abertas. Logo, esse controle vai ter zero de eficiência. É um projeto falido, é papo furado”, afirma o cientista.

Sinais

Criar uma linhagem baseada na morte prematura das fêmeas transgênicas, segundo especialistas, é reconhecer também os perigos de uma possível sobrevivência desses insetos – que está entre as grandes preocupações de cientistas e ativistas.

Autora do livro Mosquitos Geneticamente Modificados: Preocupações Atuais, a diretora da organização GeneWatch UK, Helen Wallace destaca que a sobrevivência das fêmeas é quase inevitável e, com o tempo, poderão ocorrer efeitos irreversíveis nos ecossistemas, trazendo desequilíbrios ecológicos e o surgimento de outras doenças transmitidas por insetos. Além disso, há efeitos colaterais que sequer foram considerados e avaliados em virtude da complexidade das relações entre o Aedes, outros mosquitos, os vírus que carregam e os seres humanos que serão picados.

A autora chama atenção também para a gravidade dos impactos à saúde da população exposta a uma tecnologia ineficaz, em que a eliminação temporária ou parcial da população de Aedes em áreas onde o mosquito é endêmico pode piorar o problema da dengue. A razão é que o uso da tecnologia debilita outros métodos de controle através do desvio de recursos, ou mesmo porque pode suspender o uso de outros métodos de combate ao mosquito justamente para proteger os mosquitos transgênicos.

E questiona a insuficiência e deficiências das pesquisas realizadas. A Oxitec promete segurança e eficácia da tecnologia atestadas por artigos publicados na literatura científica internacional e em experimentos a campo, com a liberação de grande quantidade de mosquitos no Brasil, nas Ilhas Cayman e na Malásia. No entanto, Helen aponta a falta de avaliações de risco, que os estudos em meio aberto não tiveram consentimento da população atingida e que desconsideram a complexidade do ecossistema.

Em 2015, a população de dois bairros de Piracicaba, interior de São Paulo, passou a conviver com os mosquitos transgênicos. Um morador da cidade, que pediu anonimato, diz que a liberação comercial do Aedes foi um equívoco. “A autorização tinha de ser, no máximo, para teste. E não para venda. Mas por pressão política, comoção, interesses comerciais, liberam. Falta informação técnica e até hoje não temos informações além dos gráficos ridículos no site da prefeitura”, diz.

Em 2016, o município registrou 142 casos confirmados de dengue e 714 notificações da doença só nos 19 primeiros dias do ano. No período, a cidade tinha também suspeitas de febre chikungunya. O número era 238% maior do que em 2015. E a quantidade de notificações no início do ano também era superior (99%) à de 2015, que teve 359 ocorrências.

Segundo a Oxitec, a eficácia da tecnologia vendida a Piracicaba é atestada por experiências em Juazeiro, em 2011, e em Jacobina, dois anos depois, com resultados que seriam excelentes. Em Jacobina, a população de Aedes teria sido reduzida em 92%. Em em Juazeiro, 93% em um bairro, e 99% em outro.  Em 2014, porém, a prefeitura de Jacobina decretou estado de emergência em razão “da situação anormal caracterizada como desastre biológico de epidemia de dengue.”

Na época, as organizações GeneWatch UK, a Third World Netwok e a AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, que integra redes de desenvolvimento rural sustentável em várias regiões do país, questionaram a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Pediram que o órgão determinasse a publicação dos resultados dos experimentos em revista científica. E ainda suspender os testes com a população e a venda dos mosquitos até a devida avaliação dos impactos e resultados a implementação de programa de monitoramento. A postura da CTNBio, que deveria  rever sua decisão, exigindo estudos sobre os efeitos dessas liberações na população local, também foi questionada.

O decreto de Jacobina foi considerado sinal de alerta para as autoridades, que continuam aprovando a comercialização mesmo sem nenhuma medida de avaliação de seus efeitos sobre a dengue. “A Anvisa foi muito evasiva, afirmando não saber como classificar a tecnologia para fins de registro. Ficou então um limbo regulatório”, afirma o agrônomo Gabriel Fernandes, assessor técnico da AS-PTA. Nos anos seguintes a prefeitura voltou a decretar estado de emergência por igual motivo.

Jacobina seria tema da mesma reunião ordinária da CTNBio, que na manhã de hoje aprovou a nova linhagem transgênica. Na pauta estava também a avaliação do relatório de conclusão da liberação dos mosquitos no município, a partir de uma parceria entre a Moscamed e a Oxitec. No entanto, o item ficou para os próximos encontros ordinários do colegiado. Pelo jeito, analisar resultados das decisões da própria comissão técnica criada para assessorar o governo sobre questões de transgênicos é coisa que pode ficar para depois.

Saiba mais: https://pratoslimpos.org.br/?tag=mosquito