Lei de Biossegurança – 15 anos contra a precaução
Do site da ANA, 24/03/2020.
No dia 24 de março de 2005 o Congresso Nacional aprovou a lei 11.105, chamada de Lei de Biossegurança, e abriu o país ao mercado das sementes transgênicas. A chave para garantir esse rápido processo de liberação de OGMs foi centralizar o poder decisório nas mãos da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), entre eles o de dispensar a liberação dos transgênicos de estudos prévios de impacto ambiental.
Hoje, passada uma década e meia, os efeitos desastrosos desse atrelamento tecnológico aos interesses do mercado são sentidos no meio ambiente, na saúde e na minguante democracia. Mais de 90% das 94 variedades de plantas transgênicas liberadas no Brasil pertencem a grandes empresas estrangeiras. Praticamente não se encontram mais no mercado sementes que não sejam transgênicas. Não foram desenvolvidas novas plantas mais nutritivas e saborosas e o uso de agrotóxicos não diminuiu, pelo contrário.
As transnacionais dos transgênicos são as transnacionais dos agrotóxicos e a grande maioria das plantas GM foi modificada para resistir à aplicação de agrotóxicos. A promessa de que a adoção dos transgênicos levaria à redução do uso de agrotóxicos evidentemente não passou de promessa. O mercado de agrotóxicos no Brasil cresce e atinge hoje cerca de 10 bilhões de dólares anuais. Os produtos mais vendidos continuam sendo herbicidas usados nas plantações transgênicas, como o glifosato e o 2,4-D, ambos classificados como potenciais cancerígenos pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer da Organização Mundial da Saúde.
A indústria dos OGMs também prometeu combater a dengue. Outra promessa fracassada. O mosquito Aedes aegypt geneticamente modificado (GM) foi testado em populações do Semiárido e logo em seguida na região Sudeste. Em total desrespeito às normas de biossegurança e de ética na pesquisa, muitas comunidades foram feitas de cobaia, sem a assinatura de termos de consentimento, e expondo-se a riscos desconhecidos apenas com base na propaganda do “mosquito do bem”. As evidências científicas que apontaram previamente seus perigos foram desconsideradas. Foi comprovada a sobrevivência do mosquito GM no ambiente. Hoje, os proponentes da tecnologia já reconhecem seus riscos, mas quem se responsabilizará pelos efeitos ambientais e à saúde humana que ainda podem surgir como resultado desse “experimento”?
Nesses 15 anos de vigência da lei 11.105/2005 a violação de direitos dos agricultores e consumidores é cada vez maior. As normas de coexistência entre plantios de milho transgênicos convencionais, híbridos e crioulos são absolutamente ineficazes, considerando o distanciamento de 100 metros entre lavouras como a única medida para evitar a contaminação. Essa regra, criada pela CTNBio, desconsidera o tamanho limitado das propriedades, as condições climáticas e do vento e a diversidade de biomas de um país continental como o nosso. Como consequência, crescem os registros de contaminação de sementes crioulas por transgênicos, inviabilizando a perspectiva da soberania alimentar pelas comunidades guardiãs das sementes crioulas.
As sementes crioulas são efetivamente mais resilientes e resistentes porque são adaptadas ao contexto local. Elas carregam a memória ancestral de gerações de agricultores que as selecionaram usando critérios próprios que atendessem às suas necessidades como resistência à seca, ser mais doce ou fornecer palha para artesanato. As empresas transnacionais padronizam as sementes com características que não atendem essas especificidades locais. Mas as contaminações, o crédito agrícola vinculado ao pacote tecnológico de transgênicos e agrotóxicos e a possibilidade de royalties cobrados pelas grandes empresas têm crescentemente violado os direitos desses agricultores e causado inúmeros danos econômicos e culturais, ainda que garantidos na Convenção Sobre a Diversidade Biológica e no Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e Agricultura – TIRFAA/FAO.
A agrobiodiversidade alimentícia formada por milhares de plantas características dos diferentes biomas e culturas brasileiras é outro aspecto que a tecnociência atrelada aos transgênicos nunca reconheceu. Essa riqueza e diversidade, cujo papel será cada vez maior no enfrentamento à fome, é descartada toda vez é que as políticas públicas fomentam as monoculturas.
Os consumidores também percebem a constante redução de produtos que não contenham transgênicos, violando seu direito de escolha e o direito à saúde. Ainda que a Lei de Biossegurança tenha garantido o direito à identificação dos produtos transgênicos, há projetos de lei avançados que pretendem acabar com a rotulagem desses produtos, como o PLC 34/2015 em trâmite no Senado.
Também se verifica uma verdadeira extrapolação das funções da CTNBio, que passou a “legislar” num verdadeiro Estado de exceção biotecnológico. O movimento é de flexibilizar as análises e acelerar ainda mais as liberações. Exemplos disso são as Resoluções Normativas 16/2018 e 24/2020 e a dispensa de planos de monitoramento pós-liberação comercial. Tais normativas violam o princípio da precaução, consolidado na Declaração do Rio Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e também no Protocolo de Cartagena da Convenção Sobre a Diversidade Biológica (CDB), tornando o Brasil pioneiro na aplicação irresponsável e não controlada dessas tecnologias agrícolas.
A constante evolução das tecnologias de engenharia genética levou ao surgimento de novas técnicas neste campo do conhecimento, que foram enquadradas pela CTNBio como não-transgênicas através da publicação da Resolução Normativa n. 16/2018. A CTNBio já liberou cerca de 10 diferentes organismos provenientes de tais tecnologias dispensando-os da necessidade de análise de risco e rotulagem. Todavia, existem elementos técnicos e jurídicos suficientes para demonstrar que os critérios adotados pela RN n. 16 contradizem as determinações constantes da Lei de Biossegurança, bem como do Protocolo de Cartagena e da CDB, das quais o Brasil é signatário. Dessa forma, a CTNBio está promovendo uma verdadeira desregulamentação de organismos que, a rigor, deveriam ser classificados como OGM.
Uma pandemia global hoje nos impõe o isolamento social como medida de precaução. Esse momento de crise torna evidente o que significa o Estado abrir mão de seu papel na promoção de um forte e amplo sistema de saúde, nos investimentos na educação, na pesquisa e na saúde. Esse momento de crise torna ainda mais evidente – como se isso fosse preciso – a desigualdade social brasileira, já que apenas uma parte da população pode estar protegida em casa. As opções tecnológicas feitas historicamente têm sua parte nesse quadro atual iniquidades. A opção pela grande propriedade de terra, pelas monoculturas, pelos mercados de commodities, pela tecnologia dependente e pela pesquisa atrelada a esse sistema promoveu desigualdades e bloqueou investimentos em outras possibilidades de se pensar o desenvolvimento de forma mais inclusiva e sustentável.
A ciência e a pesquisa que podem ajudar na construção desse futuro estão apoiadas em fortes valores cognitivos, mas também em valores éticos comprometidos com a justiça social. Está baseada nos avanços da ciência socialmente comprometida, mas também no reconhecimento dos conhecimentos locais – não há fundamento científico para se desprezar esses conhecimentos. Esses 15 anos de liberalização dos transgênicos reforçam a importância do princípio da precaução e da autonomia na prática científica. A Pesquisa é um bem público. Pertence ao público a escolha de seus benefícios.
Precisamos recuperar a solidariedade entre os brasileiros com acesso a alimentação saudável, produzida por agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais e os milhões de excluídos, sem emprego e sem acesso ao Sistema Único de Saúde, cujos organismos se fazem debilitados pelo uso massivo de agrotóxicos e os transgênicos a eles associados.
24 de março de 2020.
MOVIMENTO CIÊNCIA CIDADÃ
GT BIODIVERSIDADE DA ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA
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